segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

O BEM E O MAL

Origem do bem e do mal - O instinto e a inteligência - Destruição dos
seres vivos uns pelos outros
Origem do bem e do mal






Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo todo sabedoria,
todo bondade, todo justiça, tudo o que dele procede há de participar
dos seus atributos, porquanto o que é infinitamente sábio, justo e bom
nada pode produzir que seja ininteligente, mau e injusto. O mal que
observamos não pode ter nele a sua origem.

Se o mal estivesse nas atribuições de um ser especial, quer se
lhe chame Arimane, quer Satanás, ou ele seria igual a Deus, e, por
conseguinte, tão poderoso quanto este, e de toda a eternidade como
ele, ou lhe seria inferior.

No primeiro caso, haveria duas potências rivais, incessantemente em
luta, procurando cada uma desfazer o que fizesse a outra,
contrariando-se mutuamente, hipótese esta inconciliável com a unidade
de vistas que se revela na estrutura do Universo.

No segundo caso, sendo inferior a Deus, aquele ser lhe estaria
subordinado. Não podendo existir de toda a eternidade como Deus, sem
ser igual a este, teria tido um começo. Se fora criado, só o poderia
ter sido por Deus, que, então, houvera criado o Espírito do mal, o que
implicaria negação da bondade infinita. (Veja-se: O Céu e o Inferno,
cap. X: «Os demônios».)

Entretanto, o mal existe e tem uma causa. Os males de toda
espécie, físicos ou morais, que afligem a Humanidade, formam duas
categorias que importa distinguir: a dos males que o homem pode evitar
e a dos que lhe independem da vontade. Entre os primeiros, cumpre se
incluam os flagelos naturais.

O homem, cujas faculdades são restritas, não pode penetrar, nem
abarcar o conjunto dos desígnios do Criador; aprecia as coisas do
ponto de vista da sua personalidade, dos interesses factícios e
convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na
ordem da Natureza. Por isso é que, muitas vezes, se lhe afigura mau e
injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se lhe conhecesse a
causa, o objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a razão de ser
e a utilidade de cada coisa, verificará que tudo traz o sinete da
sabedoria infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação ao
que lhe não seja compreensível.

O homem recebeu em partilha uma inteligência com cujo auxílio lhe
é possível conjurar, ou, pelo menos, atenuar os efeitos de todos os
flagelos naturais. Quanto mais saber ele adquire e mais se adianta em
civilização, tanto menos desastrosos se tornam os flagelos. Com uma
organização sábia e previdente, chegará mesmo a lhes neutralizar as
conseqüências, quando não possam ser inteiramente evitados. Assim, com
referência, até, aos flagelos que têm certa utilidade para a ordem
geral da Natureza e para o futuro, mas que, no presente, causam danos,
facultou Deus ao homem os meios de lhes paralisar os efeitos.

Assim é que ele saneia as regiões insalubres, imuniza contra os
miasmas pestíferos, fertiliza terras áridas e se industria em
preservá-las das inundações; constrói habitações mais salubres, mais
sólidas para resistirem aos ventos tão necessários à purificação da
atmosfera e se coloca ao abrigo das intempéries. É assim, finalmente,
que, pouco a pouco, a necessidade lhe fez criar as ciências, por meio
das quais melhora as condições de habitabilidade do globo e aumenta o
seu próprio bem-estar.




Tendo o homem que progredir, os males a que se acha exposto são
um estimulante para o exercício da sua inteligência, de todas as suas
faculdades físicas e morais, incitando-o a procurar os meios de
evitá-los. Se ele nada houvesse de temer, nenhuma necessidade o
induziria a procurar o melhor; o espírito se lhe entorpeceria na
inatividade; nada inventaria, nem descobriria. A dor é o aguilhão que
o impede para a frente, na senda do progresso.

Porém, os males mais numerosos são os que o homem cria pelos seus
vícios, os que provêm do seu orgulho, do seu egoísmo, da sua ambição,
da sua cupidez, de seus excessos em tudo. Aí a causa das guerras e das
calamidades que estas acarretam, das dissenções, das injustiças, da
opressão do fraco pelo forte, da maior parte, afinal, das
enfermidades.

Deus promulgou leis plenas de sabedoria, tendo por único objetivo o
bem. Em si mesmo encontra o homem tudo o que lhe é necessário para
cumpri-las. A consciência lhe traça a rota, a lei divina lhe está
gravada no coração e, ao demais, Deus lha lembra constantemente por
intermédio de seus messias e profetas, de todos os Espíritos
encarnados que trazem a missão de o esclarecer, moralizar e melhorar
e, nestes últimos tempos, pela multidão dos Espíritos desencarnados
que se manifestam em toda parte. Se o homem se conformasse
rigorosamente com as leis divinas, não há duvidar de que se pouparia
aos mais agudos males e viveria ditoso na Terra. Se assim procede, é
por virtude do seu livre-arbítrio: sofre então as conseqüências do seu
proceder. (O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, nos 4, 5, 6 e
seguintes.)

Entretanto, Deus, todo bondade, Pôs o remédio ao lado do mal,
isto é, faz que do próprio mal saia o remédio. Um momento chega em que
o excesso do mal moral se torna intolerável e impõe ao homem a
necessidade de mudar de vida. Instruído pela experiência, ele se sente
compelido a procurar no bem o remédio, sempre por efeito do seu
livre-arbítrio. Quando toma melhor caminho, é por sua vontade e porque
reconheceu os inconvenientes do outro. A necessidade, pois, o
constrange a melhorar-se moralmente, para ser mais feliz, do mesmo
modo que o constrangeu a melhorar as condições materiais da sua
existência (nº 5).

Pode dizer-se que o mal é a ausência do bem, como o frio é a
ausência do calor. Assim como o frio não é um fluido especial, também
o mal não é atributo distinto; um é o negativo do outro. Onde não
existe o bem, forçosamente existe o mal. Não praticar o mal, já é um
princípio do bem. Deus somente quer o bem; só do homem procede o mal.
Se na criação houvesse um ser preposto ao mal, ninguém o poderia
evitar; mas, tendo o homem a causa do mal em SI MESMO, tendo
simultaneamente o livre-arbítrio e por guia as leis divinas,
evitá-lo-á sempre que o queira.

Tomemos para termo de comparação um fato vulgar. Sabe um proprietário
que nos confins de suas terras há um lugar perigoso, onde poderia
perecer ou ferir-se quem por lá se aventurasse. Que faz, a fim de
prevenir os acidentes? Manda colocar perto um aviso, tornando defeso
ao transeunte ir mais longe, por motivo do perigo. Ai está a lei, que
é sábia e previdente. Se, apesar de tudo, um imprudente desatende o
aviso, vai além do ponto onde este se encontra e sai-se mal, de quem
se pode ele queixar, senão de si próprio?

Outro tanto se dá com o mal: evitá-lo-ia o homem, se cumprisse as leis
divinas. Por exemplo: Deus pôs limite à satisfação das necessidades:
desse limite a saciedade adverte o homem; se este o ultrapassa, fá-lo
voluntariamente. As doenças, as enfermidades, a morte, que daí podem
resultar, provêm da sua imprevidência, não de Deus.

Decorrendo, o mal, das imperfeições do homem e tendo sido este
criado por Deus, dir-se-á, Deus não deixa de ter criado, se não o mal,
pelo menos, a causa do mal; se houvesse criado perfeito o homem, o mal
não existiria.

Se fora criado perfeito, o homem fatalmente penderia para o bem. Ora,
em virtude do seu livre-arbítrio, ele não pende fatalmente nem para o
bem, nem para o mal. Quis Deus que ele ficasse sujeito à lei do
progresso e que o progresso resulte do seu trabalho, a fim de que lhe
pertença o fruto deste, da mesma maneira que lhe cabe a
responsabilidade do mal que por sua vontade pratique. A questão, pois,
consiste em saber-se qual é, no homem, a origem da sua propensão para
o mal. (1)

(1) O erro esta em pretender-se que a alma haja saído perfeita
das mãos do Criador, quando este, ao contrario, quis que a perfeição
resulte da depuração gradual do Espírito e seja obra sua. Houve Deus
por bem que a alma, dotada de livre-arbítrio, pudesse optar entre o
bem e o mal e chegasse a suas finalidades últimas de forma militante e
resistindo ao mal. Se houvera criado a alma tão perfeita quanto ele e,
ao sair-lhe ela das mãos, a houvesse associado à sua beatitude eterna,
Deus tê-la-ia feito, não à sua imagem, mas semelhante a si próprio.
(Bonnamy, A Razão do Espiritismo, cap. VI.)

Estudando-se todas as paixões e, mesmo, todos os vícios, vê-se
que as raízes de umas e outros se acham no instinto de conservação,
instinto que se encontra em toda a pujança nos animais e nos seres
primitivos mais próximos da animalidade, nos quais ele exclusivamente
domina, sem o contrapeso do senso moral, por não ter ainda o ser
nascido para a vida intelectual. O instinto se enfraquece, à medida
que a inteligência se desenvolve, porque esta domina a matéria.

O Espírito tem por destino a vida espiritual, porém, nas primeiras
fases da sua existência corpórea, somente a exigências materiais lhe
cumpre satisfazer e, para tal, o exercício das paixões constitui uma
necessidade para o efeito da conservação da espécie e dos indivíduos,
materialmente falando. Mas, uma vez saído desse período, outras
necessidades se lhe apresentam, a princípio semimorais e
semimateriais, depois exclusivamente morais. É então que o Espírito
exerce domínio sobre a matéria, sacode-lhe o jugo, avança pela senda
providencial que se lhe acha traçada e se aproxima do seu destino
final. Se, ao contrário, ele se deixa dominar pela matéria, atrasa-se
e se identifica com o bruto. Nessa situação, o que era outrora um bem,
porque era uma necessidade da sua natureza, transforma-se num mal, não
só porque já não constitui uma necessidade, como porque se torna
prejudicial à espiritualização do ser. Muita coisa, que é qualidade na
criança, torna-se defeito no adulto. O mal e, pois, relativo e a
responsabilidade é proporcionada ao grau de adiantamento.

Todas as paixões têm, portanto, uma utilidade providencial, visto que,
a não ser assim, Deus teria feito coisas inúteis e, até, nocivas. No
abuso é que reside o mal e o homem abusa em virtude do seu
livre-arbítrio. Mais tarde, esclarecido pelo seu próprio interesse,
livremente escolhe entre o bem e o mal.
O instinto e a inteligência

Qual a diferença entre o instinto e a inteligência? Onde acaba
um e o outro começa? Será o instinto uma inteligência rudimentar, ou
será uma faculdade distinta, um atributo exclusivo da matéria?

O instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos a atos
espontâneos e involuntários, tendo em vista a conservação deles. Nos
atos instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. É
assim que a planta procura o ar, se volta para a luz, dirige suas
raízes para a água e para a terra nutriente; que a flor se abre e
fecha alternativamente, conforme se lhe faz necessário; que as plantas
trepadeiras se enroscam em torno daquilo que lhes serve de apoio, ou
se lhe agarram com as gavinhas. É pelo instinto que os animais são
avisados do que lhes convém ou prejudica; que buscam, conforme a
estação, os climas propícios; que constróem, sem ensino prévio, com
mais ou menos arte, segundo as espécies, leitos macios e abrigos para
as suas progênies, armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem;
que manejam destramente as armas ofensivas e defensivas de que são
providos; que os sexos se aproximam; que a mãe choca os filhos e que
estes procuram o seio materno. No homem, só em começo da vida o
instinto domina com exclusividade; é por instinto que a criança faz os
primeiros movimentos, que toma o alimento, que grita para exprimir as
suas necessidades, que imita o som da voz, que tenta falar e andar. No
próprio adulto, certos atos são instintivos, tais como os movimentos
espontâneos para evitar um risco, para fugir a um perigo, para manter
o equilíbrio do corpo; tais ainda o piscar das pálpebras para moderar
o brilho da luz, o abrir maquinal da boca para respirar, etc.

A inteligência se revela por atos voluntários, refletidos,
premeditados, combinados, de acordo com a oportunidade das
circunstâncias. É incontestavelmente um atributo exclusivo da alma.

Todo ato maquinal é instintivo; o ato que denota reflexão, combinação,
deliberação é inteligente. Um é livre, o outro não o é.

O instinto é guia seguro, que nunca se engana; a inteligência, pelo
simples fato de ser livre, está, por vezes, sujeita a errar.

Ao ato instintivo falta o caráter do ato inteligente; revela,
entretanto, uma causa inteligente, essencialmente apta a prever. Se se
admitir que o instinto procede da matéria, ter-se-á de admitir que a
matéria é inteligente, até mesmo bem mais inteligente e previdente do
que a alma, pois que o instinto não se engana, ao passo que a
inteligência se equivoca.

Se se considerar o instinto uma inteligência rudimentar, como se há de
explicar que, em certos casos, seja superior à inteligência que
raciocina? Como explicar que torne possível se executem atos que esta
não pode realizar?

Se ele é atributo de um principio espiritual de especial natureza,
qual vem a ser esse principio? Pois que o instinto se apaga, dar-se-á
que esse princípio se destrua? Se os animais são dotados apenas de
instinto, não tem solução o destino deles e nenhuma compensação os
seus sofrimentos, o que não estaria de acordo nem com a justiça, nem
com a bondade de Deus. (Cap. II, 19.)

Segundo outros sistemas, o instinto e a inteligência procederiam
de um único princípio. Chegado a certo grau de desenvolvimento, esse
principio, que primeiramente apenas tivera as qualidades do instinto,
passaria por uma transformação que lhe daria as da inteligência livre.

Se fosse assim, no homem inteligente que perde a razão e entra a ser
guiado exclusivamente pelo instinto, a inteligência voltaria ao seu
estado primitivo e, quando o homem recobrasse a razão, o instinto se
tornaria inteligência e assim alternativamente, a cada acesso, o que
não é admissível.

Aliás, é freqüente o instinto e a inteligência se revelarem
simultaneamente no mesmo ato. No caminhar, por exemplo, o movimento
das pernas é instintivo; o homem põe maquinalmente um pé à frente do
outro, sem nisso pensar; quando, porém, ele quer acelerar ou demorar o
passo, levantar o pé ou desviar-se de um tropeço, há cálculo,
combinação; ele age com deliberado propósito. A impulsão involuntária
do movimento é o ato instintivo; a calculada direção do movimento é o
ato inteligente. O animal carnívoro é impelido pelo instinto a se
alimentar de carne, mas as precauções que toma e que variam conforme
as circunstâncias, para segurar a presa, a sua previdência das
eventualidades são atos da inteligência.

Outra hipótese que, em suma, se conjuga perfeitamente à idéia da
unidade de princípio, ressalta do caráter essencialmente previdente do
instinto e concorda com o que o Espiritismo ensina, no tocante às
relações do mundo espiritual com o mundo corpóreo.

Sabe-se agora que muitos Espíritos desencarnados têm por missão velar
pelos encarnados, dos quais se constituem protetores e guias; que os
envolvem nos seus eflúvios fluídicos; que o homem age muitas vezes de
modo inconsciente, sob a ação desses eflúvios.

Sabe-se, ao demais, que o instinto, que por si mesmo produz atos
inconscientes, predomina nas crianças e, em geral, nos seres cuja
razão é fraca. Ora, segundo esta hipótese, o instinto não seria
atributo nem da alma, nem da matéria; não pertenceria propriamente ao
ser vivo, seria efeito da ação direta dos protetores invisíveis que
supririam a imperfeição da inteligência, provocando os atos
inconscientes necessários à conservação do ser. Seria qual a andadeira
com que se amparam as crianças que ainda não sabem andar. Então, do
mesmo modo que se deixa gradualmente de usar a andadeira, à medida que
a criança se equilibra sozinha, os Espíritos protetores deixam
entregues a si mesmos os seus protegidos, à medida que estes se tornam
aptos a guiar-se pela própria inteligência.

Assim, o instinto, longe de ser produto de uma inteligência rudimentar
e incompleta, sê-lo-ia de uma inteligência estranha, na plenitude da
sua força, inteligência protetora, supletiva da insuficiência, quer de
uma inteligência mais jovem, que aquela compeliria a fazer,
inconscientemente, para seu bem, o que ainda fosse incapaz de fazer
por si mesma, quer de uma inteligência madura, porém, momentaneamente
tolhida no uso de suas faculdades, como se dá com o homem na infância
e nos casos de idiotia e de afecções mentais.

Diz-se proverbialmente que há um deus para as crianças, para os loucos
e para os ébrios. É mais veraz do que se supõe esse ditado. Aquele
deus, outro não é senão o Espírito protetor, que vela pelo ser incapaz
de se proteger, utilizando-se da sua própria razão.

Nesta ordem de idéias, ainda mais longe se pode ir. Por muito
racional que seja, essa teoria não resolve todas as dificuldades da
questão.

Se observarmos os efeitos do instinto, notaremos, em primeiro lugar,
uma unidade de vistas e de conjunto, uma segurança de resultados, que
cessam logo que a inteligência o substitui. Demais, reconheceremos
profunda sabedoria na apropriação tão perfeita e tão constante das
faculdades instintivas às necessidades de cada espécie. Semelhante
unidade de vistas não poderia existir sem a unidade de pensamento e
esta é incompatível com a diversidade das aptidões individuais; só ela
poderia produzir esse conjunto tão harmonioso que se realiza desde a
origem dos tempos e em todos os climas, com uma regularidade, uma
precisão matemáticas, cuja ausência jamais se nota. A uniformidade no
que resulta das faculdades instintivas é um fato característico, que
forçosamente implica a unidade da causa. Se a causa fosse inerente a
cada individualidade, haveria tantas variedades de instintos quantos
fossem os indivíduos, desde a planta até o homem. Um efeito geral,
uniforme e constante, há de ter uma causa geral, uniforme e constante;
um efeito que atesta sabedoria e previdência há de ter uma causa sábia
e previdente. Ora, uma causa dessa natureza, sendo por força
inteligente, não pode ser exclusivamente material.

Não se nos deparando nas criaturas, encarnadas ou desencarnadas, as
qualidades necessárias à produção de tal resultado, temos que subir
mais alto, isto é, ao próprio Criador. Se nos reportamos à explicação
dada sobre a maneira por que se pode conceber a ação providencial
(cap. II, nº 24); se figurarmos todos os seres penetrados do fluido
divino, soberanamente inteligente, compreenderemos a sabedoria
previdente e a unidade de vistas que presidem a todos os movimentos
instintivos que se efetuam para o bem de cada indivíduo. Tanto mais
ativa é essa solicitude, quanto menos recursos tem o indivíduo em si
mesmo e na sua inteligência. Por isso é que ela se mostra maior e mais
absoluta nos animais e nos seres inferiores, do que no homem.

Segundo essa teoria, compreende-se que o instinto seja um guia seguro.
O instinto materno, o mais nobre de todos, que o materialismo rebaixa
ao nível das forças atrativas da matéria, fica realçado e enobrecido.
Em razão das suas conseqüências, não devia ele ser entregue às
eventualidades caprichosas da inteligência e do livre-arbítrio. Por
intermédio da mãe, o próprio Deus vela pelas suas criaturas que
nascem.

Esta teoria de nenhum modo anula o papel dos Espíritos
protetores, cujo concurso é fato observado e comprovado pela
experiência; mas, deve-se notar que a ação desses Espíritos é
essencialmente individual; que se modifica segundo as qualidades
próprias do protetor e do protegido e que em parte nenhuma apresenta a
uniformidade e a generalidade do instinto. Deus, em sua sabedoria,
conduz ele próprio os cegos, porém confia a inteligências livres o
cuidado de guiar os clarividentes, para deixar a cada um a
responsabilidade de seus atos. A missão dos Espíritos protetores
constitui um dever que eles aceitam voluntariamente e lhes é um meio
de se adiantarem, dependendo o adiantamento da forma por que o
desempenhem.

Todas essas maneiras de considerar o instinto são forçosamente
hipotéticas e nenhuma apresenta caráter seguro de autenticidade, para
ser tida como solução definitiva. A questão, sem dúvida, será
resolvida um dia, quando se houverem reunido os elementos de
observação que ainda faltam. Até lá, temos que limitar-nos a submeter
as diversas opiniões ao cadinho da razão e da lógica e esperar que a
luz se faça. A solução que mais se aproxima da verdade será decerto a
que melhor condiga com os atributos de Deus, isto é, com a bondade
suprema e a suprema justiça. (Cap. II, nº 19.)

Sendo o instinto o guia e as paixões as molas da alma no período
inicial do seu desenvolvimento, por vezes aquele e estas se confundem
nos efeitos. Há, contudo, entre esses dois princípios, diferenças que
muito importa se considerem.

O instinto é guia seguro, sempre bom. Pode, ao cabo de certo tempo,
tornar-se inútil, porém nunca prejudicial. Enfraquece-se pela
predominância da inteligência.

As paixões, nas primeiras idades da alma, têm de comum com o instinto
o serem as criaturas solicitadas por uma força igualmente
inconsciente. As paixões nascem principalmente das necessidades do
corpo e dependem, mais do que o instinto, do organismo. O que, acima
de tudo, as distingue do instinto é que são individuais e não
produzem, como este último, efeitos gerais e uniformes; variam, ao
contrário, de intensidade e de natureza, conforme os indivíduos. São
úteis, como estimulante, até à eclosão do senso moral, que faz nasça
de um ser passivo, um ser racional. Nesse momento, tornam-se não só
inúteis, como nocivas ao progresso do Espírito, cuja desmaterialização
retardam. Abrandam-se com o desenvolvimento da razão.

O homem que só pelo instinto agisse constantemente poderia ser
muito bom, mas conservaria adormecida a sua inteligência. Seria qual
criança que não deixasse as andadeiras e não soubesse utilizar-se de
seus membros. Aquele que não domina as suas paixões pode ser muito
inteligente, porém, ao mesmo tempo, muito mau. O instinto se aniquila
por si mesmo; as paixões somente pelo esforço da vontade podem
domar-se.

Destruição dos seres vivos uns pelos outros

A destruição recíproca dos seres vivos é, dentre as leis da
Natureza, uma das que, à primeira vista, menos parecem conciliar-se
com a bondade de Deus. Pergunta-se por que lhes criou ele a
necessidade de mutuamente se destruírem, para se alimentarem uns à
custa dos outros.

Para quem apenas vê a matéria e restringe à vida presente a sua visão,
há de isso, com efeito, parecer uma imperfeição na obra divina. É que,
em geral, os homens apreciam a perfeição de Deus do ponto de vista
humano; medindo-lhe a sabedoria pelo juízo que dela formam, pensam que
Deus não poderia fazer coisa melhor do que eles próprios fariam. Não
lhes permitindo a curta visão, de que dispõem, apreciar o conjunto,
não compreendem que um bem real possa decorrer de um, mal aparente. Só
o conhecimento do princípio espiritual, considerado em sua verdadeira
essência, e o da grande lei de unidade, que constitui a harmonia da
criação, pode dar ao homem a chave desse mistério e mostrar-lhe a
sabedoria providencial e a harmonia, exatamente onde apenas vê uma
anomalia e uma contradição.

A verdadeira vida, tanto do animal como do homem, não está no
invólucro corporal, do mesmo que não está no vestuário . Está no
princípio inteligente que preexiste e sobrevive ao corpo. Esse
princípio necessita do corpo, para se desenvolver pelo trabalho que
lhe cumpre realizar sobre a matéria bruta. O corpo se consome nesse
trabalho, mas o Espírito não se gasta; ao contrário, sai dele cada vez
mais forte, mais lúcido e mais apto. Que importa, pois, que o Espírito
mude mais ou menos freqüentemente de envoltório?! Não deixa por isso
de ser Espírito. É precisamente como se um homem mudasse cem vezes no
ano as suas vestes. Não deixaria por isso de ser homem.

Por meio do incessante espetáculo da destruição, ensina Deus aos
homens o pouco caso que devem fazer do envoltório material e lhes
suscita a idéia da vida espiritual, fazendo que a desejem como uma
compensação.

Objetar-se-á: não podia Deus chegar ao mesmo resultado por outros
meios, sem constranger os seres vivos a se entredestruírem? Desde que
na sua obra tudo é sabedoria, devemos supor que esta não existirá mais
num ponto do que noutros; se não o compreendemos assim, devemos
atribuí-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, podemos tentar a
pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso, tomando por bússola
este princípio: Deus há de ser infinitamente justo e sábio.
Procuremos, portanto, em tudo, a sua justiça e a sua sabedoria e
curvemo-nos diante do que ultrapasse o nosso entendimento.



Uma primeira utilidade, que se apresenta de tal destruição,
utilidade, sem dúvida, puramente física, é esta: os corpos orgânicos
só se conservam com o auxilio das matérias orgânicas, matérias que só
elas contém os elementos nutritivos necessários à transformação deles.
Como instrumentos de ação para o princípio inteligente, precisando os
corpos ser constantemente renovados, a Providência faz que sirvam ao
seu mútuo entretenimento. Eis por que os seres se nutrem uns dos
outros. Mas, então, é o corpo que se nutre do corpo, sem que o
Espírito se aniquile ou altere. Fica apenas despojado do seu
envoltório. (1)

(1) Veja-se: Revue Spirite, agosto de 1864, pág. 241, "Extinção
das raças".

Há também considerações morais de ordem elevada.

É necessária a luta para o desenvolvimento do Espírito. Na luta é que
ele exercita suas faculdades. O que ataca em busca do alimento e o que
se defende para conservar a vida usam de habilidade e inteligência,
aumentando, em conseqüência, suas forças intelectuais. Um dos dois
sucumbe; mas, em realidade, que foi o que o mais forte ou o mais
destro tirou ao mais fraco? A veste de carne, nada mais;
ulteriormente, o Espírito, que não morreu, tomará outra.

Nos seres inferiores da criação, naqueles a quem ainda falta o
senso moral, em os quais a inteligência ainda não substituiu o
instinto, a luta não pode ter por móvel senão a satisfação de uma
necessidade material. Ora, uma das mais imperiosas dessas necessidades
é a da alimentação. Eles, pois, lutam unicamente para viver, isto é,
para fazer ou defender uma presa, visto que nenhum móvel mais elevado
os poderia estimular. É nesse primeiro período que a alma se elabora e
ensaia para a vida.

No homem, há um período de transição em que ele mal se distingue do
bruto. Nas primeiras idades, domina o instinto animal e a luta ainda
tem por móvel a satisfação das necessidades materiais. Mais tarde,
contrabalançam-se o instinto animal e o sentimento moral; luta então o
homem, não mais para se alimentar, porém, para satisfazer à sua
ambição, ao seu orgulho, à necessidade, que experimenta, de dominar.
Para isso, ainda lhe é preciso destruir. Todavia, à medida que o senso
moral prepondera, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade
de destruir, acaba mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa. O
homem ganha horror ao sangue.

Contudo, a luta é sempre necessária ao desenvolvimento do Espírito,
pois, mesmo chegando a esse ponto, que parece culminante, ele ainda
está longe de ser perfeito. Só à custa de muita atividade adquire
conhecimento, experiência e se despoja dos últimos vestígios da
animalidade. Mas, nessa ocasião, a luta, de sangrenta e brutal que
era, se torna puramente intelectual. O homem luta contra as
dificuldades, não mais contra os seus semelhantes. (1)

(1) Sem prejulgar das conseqüências que se possam tirar desse
princípio, apenas quisemos demonstrar, mediante essa explicação, que a
destruição de uns seres vivos por outros em nada infirma a sabedoria
divina e que, nas leis da Natureza, tudo se encadeia. Esse
encadeamento forçosamente se quebra, desde que se abstraia do
princípio espiritual. Muitas questões permanecem insolúveis, por só se
levar em conta a matéria.

As doutrinas materialistas trazem em si o princípio de sua
própria destruição. Têm contra si não só o antagonismo em que se acham
com as aspirações da universalidade dos homens e suas conseqüências
morais, que farão sejam elas repelidas como dissolventes da sociedade,
mas também a necessidade que o homem experimenta de se inteirar de
tudo o que resulta do progresso. O desenvolvimento intelectual conduz
o homem à pesquisa das causas. Ora, por pouco que ele reflita, não
tardará a reconhecer a impotência do materialismo para tudo explicar.
Como é possível que doutrinas que não satisfazem ao coração, nem à
razão, nem à inteligência, que deixam problemáticas as mais vitais
questões, venham a prevalecer? O progresso das idéias matará o
materialismo, como matou o fanatismo.


estudoespirita@grupos.com.br

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