quarta-feira, 16 de abril de 2008

O PAPEL DA IMPRENSA

A morte de Isabella acabou se transformando num grande espetáculo para mídia, que passou a dedicar exagerado espaço para conteúdos duvidosos


Hamilton Octavio de Souza



A morte da menina Isabella, por si só um acontecimento chocante e dramático do ponto de vista pessoal e familiar, acabou se transformando num grande espetáculo para as emissoras de rádio e TV, os jornais e as revistas, que passaram a dedicar exagerado espaço para uma cobertura jornalística de conteúdos e objetivos questionáveis e duvidosos.Não é de hoje que a chamada grande imprensa empresarial - os principais veículos de comunicação de alcance nacional - exploram de forma sensacionalista crimes bárbaros e situações que são transformadas em escândalos com uma dimensão desproporcional em relação a outros fatos e acontecimentos mais relevantes para a sociedade.
A inversão de critérios é evidente: os fatos não são analisados por sua relevância social e pelo impacto de racionalidade que possam ter para o desenvolvimento da sociedade; são tratados apenas pela possibilidade da exploração emocional e passional, de maneira que provoquem o máximo de choque e nenhuma reflexão coletiva mais aprofundada.No caso da morte da menina Isabella, aparentemente uma fatalidade (como tantos outros casos isolados que ocorrem diariamente pelo Brasil afora), a cobertura da mídia - na busca de audiência e de aumento de vendagem nas bancas - tratou como se fosse uma novela, com capítulos diários recheados de detalhes irrelevantes e paralelos, mas dosados - com a ajuda da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário - de suspense suficiente para manter o telespectador (leitor e ouvinte) aprisionado no enredo da história.
Apenas para destacar esse tratamento diferenciado, no mesmo dia da morte da menina, 150 soldados da tropa de elite da Polícia Militar do Rio de Janeiro invadiram uma favela e assassinaram 10 pessoas. Não foi a primeira vez, nos últimos meses, que a PM do Rio cometeu tamanha barbárie contra uma comunidade pobre. No entanto, a grande imprensa nacional deu apenas um pequeno registro desse crime violento praticado pelos agentes do Estado.
Do ponto de vista da relevância social, o crime do Rio atenta contra toda a sociedade, pois representa uma violação bárbara de direitos. No entanto, o tratamento dado para esse genocídio carioca é o da banalização total do crime, é o do rebaixamento do valor das vidas humanas porque os mortos estão localizados na escala mais baixa das condições de vida no País.
Do ponto de vista do espetáculo e da comercialização dos fatos, o caso da menina Isabella "permite" muito mais exploração inconseqüente do que as 10 mortes do Rio de Janeiro. No caso da Isabella, a mídia dissecou todos os detalhes possíveis, entrevistou dezenas de pessoas, desde parentes até colegas e professores. No caso do crime do Rio, o assunto morreu no mesmo dia e o povo brasileiro nada ficou sabendo sobre as vítimas, quem eram, quais as suas histórias, o que faziam, quem são os seus parentes e porque foram assassinadas.
Em momentos como esse é que se verifica que o jornalismo brasileiro sofre de grave distorção nos seus critérios de seleção dos assuntos, na escolha do destaque dado aos fatos e na linha dos enfoques. Mais importante do que transformar atos anti-sociais (crimes) em shows de emoção, é analisar a realidade – política, econômica e social - que gera a violência e leva o ser humano ao ato anti-social.
O papel mais nobre da imprensa é o de fornecer para a sociedade o material jornalístico que contribua efetivamente para elevar o nível de informação, de consciência e de compreensão da nossa realidade.



Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor da PUC-SP.

terça-feira, 15 de abril de 2008

SÉRIE ANTROPOLOGIA DO ESPIRITISMO

Narrativas biográficas: a construção da identidade espírita no Brasil e sua fragmentação

Sandra Jacqueline Stoll


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RESUMO

A BIOGRAFIA de dois médiuns brasileiros - Chico Xavier e Luiz Antonio Gasparetto -, constitui o objeto de reflexão deste artigo, que tem como propósito rever as relações construídas pelo espiritismo no campo religioso brasileiro, salientando, em especial, os diálogos estabelecidos com a religião hegemônica no país, o catolicismo e, mais recentemente, com o universo da chamada "Nova Era". Na trajetória dos personagens em questão, o catolicismo ocupa lugar central: no caso de Chico Xavier como matriz de reinterpretação da doutrina espírita; no caso de Luiz Antonio Gasparetto, como alvo de crítica. Essas duas biografias caracterizam, portanto, momentos distintos da história do espiritismo no Brasil. Ao mesmo tempo, a convivência desses dois modelos evidencia modos concorrentes de sua expressão contemporânea no país.


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ABSTRACT

THE BIOGRAPHY of two Brazilian psychics - Spiritist channelers Chico Xavier and Luiz Antonio Gasparetto - is this essay's object of thought, a review of the relationships created by Spiritism in the Brazilian religious milieu, stressing in particular the dialogue with the country's hegemonic religion, Catholicism, and, more recently, with the universe of the so-called New Age. In the life history of the two mediums, Catholicism plays a central role: for Chico Xavier as a matrix to reinterpret the Spiritist doctrine; for Luiz Antonio Gasparetto, as an object of criticism. The two biographies, therefore, characterize distinct moments in the history of Spiritism in Brazil. At the same time, the simultaneous existence of both models evinces competing modes of their contemporary expression in Brazil.


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Introdução

Para se designarem coisas novas são precisos termos novos [...] Os vocábulos espiritual, espiritualista, espiritualismo têm acepção bem definida [...] Com efeito, o espiritualismo é o oposto do materialismo. Quem quer que acredite haver alguma coisa em si além da matéria, é espiritualista. Não segue daí, porém, que creia na existência dos Espíritos ou em suas comunicações com o mundo visível [...] para indicar a crença a que vimos a referir-nos (empregaremos) os termos espírita ou Espiritismo. Diremos, pois, que a doutrina espírita ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos ou seres do mundo invisível.
(Allan Kardec, O livro dos espíritos, 1860)

QUASE 150 anos se passaram desde o lançamento do primeiro livro de Allan Kardec, que inaugura a difusão do Espiritismo na França e demais países da Europa1. Uma homenagem a seu autor teve lugar no mês de outubro último, a pretexto da comemoração dos duzentos anos de seu nascimento. Paris, sede do evento, ainda guarda a aura mítica de berço de origem da doutrina, embora na França, assim como na Europa de modo geral, Allan Kardec e sua doutrina sejam hoje praticamente desconhecidos. Além do número reduzido de seus adeptos, atesta-o a participação minoritária dos europeus na programação do evento2. Dentre os países participantes, o de maior destaque é o Brasil, sinalizando, de um lado, a posição por este assumida no contexto internacional como pólo de irradiação da doutrina e, de outro, a importância conquistada pelo Espiritismo no cenário religioso nacional.

Num momento em que a inserção na mídia, em especial a televisão, se destaca como fator de divulgação doutrinária, constituindo um novo campo de disputa no espaço público, o Espiritismo vem alargando sua inserção social, especialmente entre os segmentos da classe média, por meio do investimento no campo literário. "A literatura espírita é o mais novo fenômeno editorial do país", afirma uma reportagem da revista Época, de maio de 2003. "Tradicionalmente vendidos nos redutos kardecistas, os livros psicografados - escritos por pessoas que se dizem conectadas com almas que enviam mensagens do Além - (vêm despertando) a atenção das grandes editoras". É o caso da Editora Siciliano, uma das maiores do país, que lançou em meados de 2003 o seu primeiro livro espírita, Do outro lado da vida, de Arthur Vasconcelos: "sem divulgação, vendeu 10 mil exemplares em dois meses". A preferência do público por esse tipo de literatura é aquilatada como segue nesta mesma reportagem: "Hoje, um em cada dez clientes entra em livrarias para comprar livros que trazem ditames enviados por espíritos". Uma pesquisa realizada no site Submarino confirma essa tendência: "o leitor espírita responde por mais da metade das encomendas de livros religiosos e compra 15% mais que os outros". Os campeões de venda nesse segmento são Allan Kardec, Chico Xavier, Zíbia Gasparetto3 e Vera Lúcia Marinzeck. No entanto, como observa o diretor-comercial do site Submarino, "pessoas de todas as crenças (consomem) esse tipo de obra", o que indica que a difusão dos preceitos doutrinários espíritas extrapola de longe suas fronteiras institucionais.

Algumas pesquisas de opinião pública corroboram essa conclusão, em especial quando se trata do tema da representação da vida pós-morte: uma delas, realizada em 1998 pelo Instituto Gallup, constatou que 45,9%, ou seja, quase metade dos católicos que dizem freqüentar semanalmente serviços religiosos afirma "acreditar na reencarnação". Embora se trate de tema proscrito pela tradição cristã, o mesmo constatou o Ceris (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais) numa pesquisa realizada em 2000 em cinco metrópoles brasileiras: 55,7% dos entrevistados disseram "acreditar em vida após a morte", sendo que 35,8% destes afirmaram crer na "reencarnação dos mortos"4.

Para se aquilatar a profundidade cultural e a extensão social da difusão deste sistema de crenças, os dados dos censos demográficos são insuficientes, uma vez que estes são incapazes de apreender a "dupla pertença", fenômeno corrente no campo religioso brasileiro. Declarar-se "católico" é uma prática ainda vigente entre os espíritas, assim como se dizer "espírita" é uma prática dos adeptos de religiões afro-brasileiras, especialmente entre os segmentos sociais de baixa renda5. Herdada dos tempos da perseguição policial às atividades mediúnicas de cura, sob o respaldo da Constituição de 1891, esta prática contribui, juntamente com a "transitividade" (espécie de religiosidade itinerante, cujos registros parecem ter-se acentuado nos últimos anos) ao delineamento de "um cenário em que a religiosidade é vivida de maneira mais alargada do que aquela confessada ao entrevistador" (Almeida, 2004, p. 11). Neste cenário se incluem não apenas os que "se dizem católicos" mas professam crenças espíritas (ou outras), como também aqueles que se declaram "sem religião". Conforme sugere Almeida (2004), este tipo de declaração não significa necessariamente "ausência de religiosidade". Segundo o autor, esta categoria abriga pessoas que "não têm freqüência assídua aos serviços religiosos, nem envolvimentos pessoais com a comunidade moral [...], mas mantém uma disposição religiosa frente ao mundo, principalmente em situações de insegurança física, emocional, financeira etc." (Almeida, 2004, p. 7). Dentre estes também se incluem aqueles que inventam o seu próprio "cardápio de credos e práticas", desvinculando-se, dessa forma, de marcas de pertencimento definidas.

A profusão contemporânea dessas territorialidades religiosas pouco institucionalizadas define uma nova configuração do campo religioso, na qual o Espiritismo encontra novos espaços sociais de difusão, pouco mensuráveis, no entanto, estatisticamente. As dificuldades de sua apreensão se refletem nos estudos mais recentes sobre a religiosidade brasileira contemporânea: freqüentemente estes se voltam para a análise da expansão dos evangélicos, com destaque para o "fenômeno da Igreja Universal" e a "guerra santa" que envolve suas relações com as religiões de tradição africana. Outro tema recorrente é a investida "carismática católica", que também remete à questão da expansão pentecostal (Birman, 1994 e 1995; Mariz e Machado, 1994; Sanchis, 1994 e 2001; Almeida, 2003 dentre outros). Este artigo pretende contribuir para a complementação desse quadro, deslocando o foco de atenção para uma outra malha de relações consolidadas e em processo de elaboração no campo religioso brasileiro, na qual o Espiritismo figura como ponto de articulação.



"Olhar de fora", "visão de dentro":

versões da identidade espírita

A experiência do transe, da possessão e da mediunidade tem sido largamente referenciada nos estudos antropológicos como denominador comum da religiosidade brasileira. Cândido Procópio Camargo (1961) foi o primeiro a pensar essa experiência em termos de um continuum, no qual o Espiritismo representaria uma estrutura "de mediação" entre tradições religiosas de origem afro6. Nas suas palavras:

pode-se perceber uma curva de modificações (nas práticas dos) terreiros, que permite ordenar os vários tipos em uma seqüência significativa - o continuum. O princípio teórico que preside a organização desse "gradiente" é a doutrina espírita: tanto mais "afro" será considerado o "terreiro" de umbanda quanto mais distante do centro do continuum; por sua vez, quanto mais próximo do kardecismo, diminui a riqueza ritualística e a ênfase em práticas mágicas, em virtude de uma "maior ênfase na interiorização da experiência religiosa, no aprendizado doutrinário e na vida moral" (Camargo, 1961. Cf. pp. 49 e 51).

Passados mais de trinta anos, Patrícia Birman retoma essa idéia, questionando a tendência que se tornou corrente na literatura antropológica: "Estamos, afinal, lidando com "religiões" autônomas, cada qual com sua "visão de mundo", ritos e mitos, ou estamos nos referindo a um universo de cultos inter-relacionados e subordinados à lógica associada à possessão?". Questão que se desdobra em outra: "Será, de fato, que as identidades diferenciadas que se apresentam entre os cultos de possessão possuem um tal grau de autonomia que desencoraja qualquer tentativa de percebê-las integradas entre si, hierarquizadas (conforme) a visão dos religiosos?" (Birman, 1995, p. 13).

O trânsito dos adeptos entre as várias práticas religiosas associadas à possessão, como no caso de Cândido Procópio, leva a autora a explorar essa pista.

Os próprios adeptos, assim como a maioria dos estudiosos do tema, no entanto, criticam essa postura. Dentre os primeiros, conforme salienta Cândido Procópio, os espíritas são os mais radicais na rejeição dessa hipótese. Segundo o autor, eles se dividem entre aqueles que repelem "formalmente qualquer semelhança com a Umbanda, alegando que a mediunidade não é traço característico de nenhuma religião em especial", enquanto outros argumentam ser a Umbanda uma "modalidade de crença adequada aos espíritos mais ignorantes", portanto, "hierarquicamente inferior"(Camargo, 1961, pp. 86 e 87)7. Os umbandistas, por sua vez, incorporam a representação hierárquica como modo de afirmação da diferença, uma vez que atribuem "superioridade moral e 'evolutiva' ao sistema de Kardec" (Camargo, 1961, p. 86).

Quanto aos autores que se dedicaram ao estudo desse tema, a tendência dominante consiste na construção dessas identidades religiosas em termos de confronto, de oposição. Contrapondo-se às religiões de tradição africana, o Espiritismo é apresentado como uma espécie de "espelho invertido", seja quanto a suas características sociais e étnicas, seja quanto à estrutura ritual e doutrinária. Essa tradição, inaugurada por Bastide (1960), foi perpetuada pelos trabalhos que se seguiram (Ortiz, 1978; Maggie, 1982; Brown, 1985; Cavalcanti, 1983, dentre outros).

O recorte proposto por essas abordagens, centrado no fenômeno da possessão, deixa de lado, ou pelo menos coloca em segundo plano, uma outra dimensão das relações construídas pelo Espiritismo no campo religioso. Refiro-me às relações estabelecidas com o Catolicismo, a religião ainda hoje hegemônica no país. Minimizada pela literatura, essa dimensão é de fundamental importância para se compreender como se constituiu a identidade espírita na Brasil. Como pretendo demonstrar adiante, no contexto das disputas e negociações com o Catolicismo é que se forja a inserção do Espiritismo no campo religioso brasileiro, definindo-se a partir desta relação o seu ethos marcadamente católico - sinal diacrítico que define o seu perfil em oposição ao modelo "científico", tido como "versão original", vinda da França. Desenvolvo esse tema a partir de dois estudos de caso: o primeiro, tem como objeto a história de vida e carreira de Chico Xavier; o segundo trata da trajetória recente do médium Luiz Antonio Gasparetto. O Catolicismo ocupa na trajetória de ambos lugar central: no caso do primeiro, como matriz de reinterpretação da doutrina espírita; no segundo, como alvo de crítica, em função da qual se busca a construção de relações com novos interlocutores, em especial com o universo da chamada "Nova Era"8. A escolha dessas duas biografias se justifica por razões metodológicas: concebidas como figuras paradigmáticas, esses personagens representam momentos distintos da história do Espiritismo no Brasil. Ao mesmo tempo, a convivência dos modelos de espiritualidade por eles engendrados evidencia modos concorrentes da expressão contemporânea do Espiritismo no país. A apresentação destes personagens segue a cronologia, assim como uma certa "hierarquia espiritual": começo pelo mais famoso dentre eles.



Chico Xavier, o "homem-santo"

É possível duvidar do Espiritismo, mas é impossível duvidar de Francisco Cândido Xavier [...] Os que a ele chegam, carregados das aflições do mundo, saem com o coração leve, a fé reanimada [...] Ninguém pode vê-lo como impostor. A menos que a impostura pudesse ser também astuta forma de santidade.
(Bacelli, Chico Xavier: mediunidade e coração)

Para milhões de brasileiros o médium mineiro é um santo, a ponte mais confiável até o outro mundo, a prova de que a morte não existe. Para outros tantos é um personagem exótico. (Apesar de) menosprezado pela intelligentsia nacional [...] sobreviveu. Virou mito.
(Souto Maior, As vidas de Chico Xavier)

Os espíritas de todo o mundo acreditam numa futura missão civilizadora do Brasil [...] Se assim for, Chico Xavier terá sido, sem dúvida, o grande apóstolo da Nova Era.
Ubiratan Machado, Uma vida com amor)

A liderança de Chico Xavier no meio espírita se consolidou em torno dos anos de 1940 e 1950, pouco mais de meio século depois da constituição dos primeiros grupos responsáveis pela difusão da doutrina no país. Até então raros eram os nomes de destaque nesse universo religioso oriundos das classes populares. Chico Xavier constitui uma exceção. Mas sua importância, como sugerem as frases acima, extravasa esse detalhe. Como pretendo demonstrar a seguir, a imagem de "homem-santo" não traduz uma apropriação indébita. Ao contrário, reflete o processo cultural de inserção do Espiritismo no campo religioso brasileiro por meio de um diálogo intenso, muitas vezes conflituoso, com a religião dominante no país: o Catolicismo. Apreenderemos as bases dessa construção a partir da narrativa de sua história de vida e carreira religiosa.

Memória da mediunidade

Chico Xavier ficou conhecido como um bom contador de histórias. De sua vida ele contou várias, registradas mais tarde em livros, por terceiros. Sem fazer muita conta do "cenário", os "casos" relatados descrevem em flashes rápidos experiências da infância, da família, do trabalho e, sobretudo, da mediunidade. Retratos soltos que permitiriam múltiplas composições. Alinhavados, porém,à semelhança da história de vida dos santos, por meio deles se exalta, sobretudo, as qualidades morais do personagem, numa clara intenção de produzir um modelo de exemplaridade.

O "itinerário da santidade", tal como o concebe Michel de Certeau (1982) serve como parâmetro para se apreender a estrutura dessa narrativa. Segundo o autor, esse tipo de percurso compreende dois movimentos: primeiro o indivíduo "assume distância com relação às origens [...] A vocação do santo o exila da cidade para conduzi-lo ao deserto, aos campos ou a terras longínquas"; o segundo movimento consiste no "itinerário de retorno". Do "lugar sagrado" o indivíduo retorna ao grupo ou comunidade de origem ou, então, simplesmente volta à vida na cidade ou percorre múltiplas cidades (cf. pp. 269 e 277). O primeiro movimento delimita o "tempo de ascese"; o segundo, de retorno, "o tempo dos milagres e das conversões" (p. 277). Essas duas etapas conformam o quadro "inicial" e "final" do "itinerário da santidade". Em meio a elas situa-se o período das "provações", instância ritual que dinamiza o esquema, permitindo particularizar, personalizar "a história".

A narrativa da vida de Chico Xavier, como se verá em seguida, exige uma adaptação desse modelo, visto que a fase profana de sua vida, isto é, o período que antecede sua conversão ao Espiritismo, incorpora o início das "provações". Relida como uma história de eleição, a narrativa de sua vida tem como fio condutor o "sofrimento", categoria por meio da qual se tece e se entrelaçam as experiências da infância aos percalços do trabalho mediúnico, aos quais o passar do tempo acrescenta o desgaste físico, os problemas de saúde e as vicissitudes da velhice. Trata-se, portanto, de uma única e mesma imagem, sempre renovada, que como categoria narrativa permite estabelecer laços de continuidade entre as etapas fundamentais de sua carreira religiosa e trajetória pessoal.

O modelo hagiográfico informa essa moldura narrativa, o que se pode observar tanto nas suas etapas fundamentais, como nos temas a que estas remetem. A intenção do que segue é salientar a inspiração dessa construção narrativa no modelo de "virtudes cristãs", tal como formulado pelo Catolicismo.

Reunindo fragmentos

"Com o diabo no corpo": a visão católica do fenômeno mediúnico

Nascido em 2 de abril de 1910, numa pequena cidade mineira do interior, Chico Xavier teve uma infância bastante atribulada. Filho mais velho de uma extensa prole de um casal de poucas posses, sua educação, como era tradição do lugar, foi lastreada no Catolicismo. Nesta fase, no entanto, segundo seus relatos, ocorrem as primeiras manifestações de "contato com os espíritos", tendo como evento propulsor a morte de sua mãe, ocorrida em 1915, quando ele tinha apenas cinco anos de idade. João Cândido, o pai, era vendedor de bilhetes de loteria e viajava muito. Sem condições de criar os filhos sozinho, resolveu distribuí-los entre parentes e vizinhos. Chico Xavier foi entregue a Rita de Cássia, sua madrinha. A memória desse tempo é de maus tratos: ela o surrava com vara de marmelo todos os dias. Muitas vezes sem motivo. Os castigos, porém, aumentaram depois que ele contou-lhe ter visto e conversado com a mãe no fundo do quintal. A partir daí, além da surras, a madrinha passou a dar-lhe garfadas na barriga, acusando-o, em função de suas "conversas com os mortos", de "ter parte com o diabo". Esse suplício durou dois anos. Depois disso ele voltou a morar com o pai, que se casara novamente.

As "visões", porém, não cessaram, o que lhe causou inúmeros conflitos dentro e fora do contexto familiar. Segundo se conta, Chico "levantava no meio da noite, batia papo com fantasmas e muitas vezes estragava o café da manhã do pai com notícias de parentes mortos" (Souto Maior, 1994, p. 16). Cidália, sua madrasta, com quem ele conversava nos fins de tarde ao pé do tanque, por inúmeras vezes ouviu-o dizer que "via próximas ao varal figuras cobertas com mantos coloridos" (Souto Maior, 1994, p. 17). Esta, segundo se conta, dava-lhe crédito, ao contrário de D. Rosária, sua professora primária. Ao participar de um concurso de redação instituído pelo governo do Estado de Minas Gerais em comemoração ao primeiro centenário da Independência, Chico levantou-se em meio à prova para comunicar à professora que pressentia a presença de um homem que lhe ditava um texto. Sem dar-lhe muita atenção, ela pediu que ele voltasse ao seu lugar e terminasse a prova. A notícia, porém, espalhou-se na sala e na aula seguinte os colegas fizeram-lhe um desafio. Como prova queriam que o "tal homem" viesse "outra vez, ali mesmo [...] à frente de todos para escrever sobre um tema escolhido por eles". O tema proposto, escolhido ao acaso por um dos meninos, foi o grão de areia. Chico relata: "lembro-me que o espírito [...] ao meu lado começou ditando: "Meus filhos, que ninguém escarneça da criação. O grão de areia é quase nada, mas parece uma estrela" (Barbosa, [1967]1992, p. 17).

Fatos como esses se repetiam quase diariamente, em sonhos, na escola, nos momentos de ócio. João Cândido inúmeras vezes ameaçou internar o filho num sanatório. A tese de que se tratava de caso de loucura era, porém, refutada pelo padre Scarzelli, que procurava aplacar a situação com o receituário católico tradicional: novenas, penitências, rezar mil Ave-Marias... Chico Xavier lembra, por exemplo, que aos nove anos de idade, por ordem do pároco, participou de uma procissão carregando uma pedra de quinze quilos na cabeça. Penitência complementada pela obrigação de repetir mil vezes a Ave-Maria. Além disso, impuseram-lhe que freqüentasse regularmente a Igreja, participando inclusive das novenas. Os resultados, segundo ele, não foram os esperados: enquanto rezava e contava acompanhando a procissão, "um espírito desocupado fazia caretas e bocas para atrapalhar seus cálculos". Além disso, quando estava na Igreja, cumprindo as novenas, "assombrações flutuavam sobre os bancos e beijavam os santos" (Souto Maior, 1994, p. 11) Padre Scarzelli decidiu então "ser mais duro". Aconselhou João Cândido, pai de Chico, a ocupar o tempo livre do menino, arranjando-lhe um emprego. À época, a fábrica de tecidos da cidade estava empregando crianças para trabalhar no período noturno. Chico Xavier foi admitido:

Fui trabalhar como tecelão. Entrava às três da tarde, saía à uma da madrugada. Dormia até às seis, ia para a escola, saía às onze. Almoçava, dormia uma hora [...] e entrava de novo na fábrica (Machado, 1984 [1992], pp. 25-26).

A rotina diária era estafante para uma criança de dez anos; restava-lhe apenas o fim de semana para descanso e lazer. Algumas atividades, contudo, foram-lhe proibidas: o padre Scarzelli recomendou, como medida complementar, que se evitasse a "má influência" dos livros, revistas e jornais. Assentindo, João Cândido "fez uma fogueira das páginas proibidas" (Machado, 1984[1992], p. 18). Inconformado, Chico relata que recorreu, como sempre fazia, ao "espírito" da mãe. Esta lhe deu um conselho:

Aprenda a calar-se. Quando lembrar, por exemplo, alguma lição ou experiência recebida em sonho, fique em silêncio. Mais tarde talvez você possa falar (Machado, 1984 [1992], p. 18).

Chico passou então a restringir seus comentários ao confessionário. Mas o padre Scarzelli insistia: "Ninguém volta a conversar depois da morte". E acrescentava: "O demônio procura perturbar-lhe o caminho". Chico, porém, não se deixava convencer: "Mas padre, foi minha mãe quem veio [...]". O padre retrucava: "Foi o demônio [...]" (Machado, 1984 [1992], p. 18).

Há vários outros exemplos dessa mesma ordem, mas os enunciados me parecem suficientes para evidenciar o peso e o significado da interpretação institucional, católica do fenômeno mediúnico. A convergência de leigos e eclesiásticos na interpretação do fenômeno mediúnico chama atenção, considerando-se que o pároco e a madrinha de Chico Xavier o entendem da mesma forma, isto é, como "coisa do diabo". Essa convergência se manifesta também quanto às atitudes assumidas com relação ao fenômeno da mediunidade: ambos entendiam ser preciso reprimi-lo, inibir sua manifestação, num caso, por meio de castigos corporais, noutro, pela oração e penitência.

Confrontando-se na sua experiência cotidiana com esse caráter prescritivo do Catolicismo oficial em relação ao fenômeno da mediunidade, Chico Xavier desenvolveu uma relação ambígua com o Catolicismo: como se depreende dos exemplos acima, a experiência vivida coloca-o em confronto com os dogmas institucionais; ao mesmo tempo, na busca de um modelo de relação com os "espíritos" se aproxima de idéias e práticas correntes nos meios populares, em particular, aquelas que dizem respeito à relação com os santos.

A conversão

Transição de natureza marcadamente simbólica, a conversão de Chico Xavier ao Espiritismo ocorreu quando ele tinha dezessete anos, depois de assistir a uma sessão espírita a que foi submetida uma sua irmã, depois de anos de tratamentos médicos mal sucedidos na tentativa de controlar seus "acessos de loucura". Chico participou das orações e passes, sendo em seguida introduzido à obra de Allan Kardec.

A narrativa desse fato ao pároco e a decisão de seguir a nova doutrina marcam o seu desligamento oficial do Catolicismo. A mudança de tutoria constitui uma das marcas fundamentais do trânsito religioso, por meio do qual se inaugura a primeira fase do "itinerário da santidade", sinalizada pela ruptura com o universo de crença de origem. A tutela espiritual de Chico Xavier vinha sendo até então exercida pela mãe, "em espírito", e pelo padre. Essa dualidade é eliminada com a conversão religiosa, estabelecendo-se a partir daí a sujeição exclusiva à tutela dos "espíritos". Ritualmente, a mudança foi marcada pela substituição do vínculo de consangüinidade (mãe-filho) pelo vínculo de parentesco simbólico, selado na relação de apadrinhamento estabelecida entre médium e "guia-espiritual".

Uma fase liminar, característica dos processos iniciáticos, tem lugar nesse momento, caracterizada pela produção anônima de textos psicografados, os quais envolvem dupla iniciação: além do desenvolvimento da escrita mediúnica, estas promoveram a familiarização de Chico Xavier com um "discurso de virtudes", que incisivamente remetia à questão da obediência, da paciência e da humildade. Esses temas, que até então haviam sido objeto de orientação materna como solução para os conflitos familiares, passaram, a partir de então, a servir de modelo para seu comportamento público.

O primeiro "encontro" com seu "guia-espiritual", ocorrido em 1931, promoveu o selamento de um "contrato de trabalho" entre ambos visando à produção de livros mediúnicos. Chico Xavier conta que se encontrava num final de tarde em orações à beira de um açude, localizado à saída da cidade, quando avistou um espírito "envergando uma túnica semelhante à dos sacerdotes" que a ele se apresentou: "Está disposto a trabalhar na mediunidade?", perguntou. "O senhor acha que estou em condições de aceitar o compromisso?", retrucou o médium. O "espírito" respondeu: "Perfeitamente, desde que respeite três pontos básicos". Enumerando-os, repetiu três vezes a palavra "disciplina" (Gama, [1955] 1992, p. 64).

A partir daí desenvolveu-se entre ambos uma relação duradoura, cotidiana, de caráter, sobretudo, disciplinador. O processo de sujeição à vontade "dos espíritos" não se deu sem resistência. Acabou, porém, se concretizando, por meio de um processo que envolveu a combinação de gestos de ruptura, assim como de continuidade em relação à filiação religiosa de origem. A relação médium/ "guia-espiritual" constitui uma relação de ordem ritual, que, a exemplo do que ocorre na relação com os santos, extravasa para a vida cotidiana, caracterizando-se em larga medida pela intimidade da relação de tipo filial. Por outro lado, a autoridade do "espírito-guia" se impõe nesse caso com base no modelo institucional católico. O preceito hierárquico da obediência, pilar dessa relação, se expressa, conforme relata Chico Xavier, de forma clara: "Emmanuel" se apresenta com vestes sacerdotais, semelhantes às de um padre jesuíta9. Os trajes que ele ostenta (uma espécie de batina preta), assim como a rígida disciplina de trabalho e de vida imposta ao médium, remetem a práticas de ordem institucional.

Caracteriza, portanto, essa primeira etapa do percurso iniciático de Chico Xavier um duplo sincretismo com a tradição católica. Na etapa seguinte, "de retorno" a influência do modelo monástico católico se torna dominante, constituindo o meio pelo qual se produz a sua imagem pública. Sintetiza essa etapa a idéia de uma "vida desapropriada", expressão que desloca a idéia da santidade como algo socialmente construído, de modo a permitir a sua representação como uma epifania: em lugar da mudança, da evolução, o relato biográfico descreve uma "constância", postulando um "princípio gerador" do texto e suas manifestações de superfície [...] O fim repete o começo [...] tudo é dado na origem como "vocação" (ou) uma "eleição". Essa é "a lei que organiza a vida de santo" (Certeau, 1982, p. 273).

A produção da exemplaridade

Como se observa nos relatos hagiográficos, a construção de uma vida santificada é um projeto que se desenvolve ao longo de uma vida. De início, freqüentemente envolve hesitações, incertezas, dificuldades. Como ideal de comportamento, implica o endosso de um "modelo de virtudes", que deve se expressar por meio de provas públicas.

A humildade, imposta na fase de disciplinamento, constitui um aspecto da vida de santo partilhado por vários sistemas de crença. A renúncia complementa esse modelo, podendo realizar-se por meio do retiro da sociedade ou pela criação de um estilo de vida sui generis, que se expressa pela oposição a valores culturais e/ ou sociais do meio envolvente, como ocorre nesse caso. Os relatos de Chico Xavier evidenciam que, para essa construção, inspirou-se no modelo monástico de virtuosidade católica, no qual constitui preceito fundamental a renúncia ao sexo, ao casamento e a bens materiais:

Para que os livros nascessem de minhas pobres faculdades, de modo mais intenso [...] foi preciso [...] que eu aceitasse a existência em que me encontro, na qual o matrimônio [...] não seria possível. Isto não quer dizer que a mediunidade crie antagonismos entre médium e casamento terrestre, mas sim que determinadas tarefas mediúnicas requisitam condições especiais para que se façam cumpridas (Folha Espírita, nov. 1976; transcrito por Nobre, 1996, p. 145).

A renúncia ao matrimônio como condição de realização plena da potencialidade mediúnica sugere a concepção cristã do sacerdócio. No depoimento de Chico Xavier, como no de outros médiuns10, observa-se que a "imposição" do celibato legitima a releitura da própria biografia como a história de uma eleição. Chico Xavier explicitou inúmeras vezes essa sua condição recorrendo a frases feitas: "De que vale um perfume preso a um frasco?". Ou então: "Porque ficar preso a uma mulher?" Fazendo uso dos mesmos argumentos de que se serve o clero católico, dizia: "minha família é a humanidade" (Souto Maior, 1994, p. 74).

Capitalizadas simbolicamente, as práticas do"celibato e da castidade adquiriram, no decorrer do tempo, um novo significado, transformando-se de componente da personalidade do médium em forma de expressão modelar da mediunidade espírita. Não sendo esta, porém, uma norma doutrinária, o que esse percurso sinaliza é a apropriação por Chico Xavier de práticas institucionais de construção da santidade católica.

O mesmo se observa no que se refere à relação com bens materiais. A experiência de pobreza veio-lhe de berço. Mas o desapego de bens materiais, como forma de sinalizar distanciamento das "coisas do mundo", foi uma experiência construída, referenciada no voto de pobreza católico. Dos relatos de Chico Xavier se depreende que este pouco desfrutou, em mais de noventa anos de existência, das benesses do chamado "mundo moderno". A princípio, em conseqüência das restrições financeiras que caracterizaram as condições de vida de sua família. Mais tarde, por opção pessoal: seus livros psicografados, traduzidos em várias línguas, renderam milhões em direitos autorais. Ele, contudo, nunca se apropriou de qualquer parcela desses rendimentos. Oficialmente, por meio de registro em cartório, doou os proventos dos livros mediúnicos às editoras de seus livros, bem como a inúmeras obras sociais. Viveu sempre exclusivamente de seu minguado salário de funcionário público de baixo escalão. Como prova de gratidão, muita gente chegou a lhe oferecer dinheiro. Chico recusava sistematicamente: "Ajude o primeiro necessitado que encontrar", dizia ele. O mesmo fazia com os presentes com que era agraciado. Sistematicamente recusou também doações que lhe foram feitas, envolvendo terras e dinheiro. Tudo foi repassado a instituições de caridade.

A prática da caridade, cujas formas introduzidas por Chico Xavier se tornaram mais tarde modelares para a prática espírita, também se inspira em práticas institucionais católicas. É o caso da peregrinação, denominação dada às visitas realizadas aos sábados à tarde a famílias que viviam embaixo de uma ponte em Pedro Leopoldo. Acompanhado de um grupo de amigos, Chico Xavier lhes levava doações feitas durante a semana em roupas e alimentos. Em Uberaba, onde ele se estabeleceu alguns anos mais tarde, essa atividade se estendeu aos bairros de periferia. As visitas a doentes em hospitais e a presidiários também foram incorporadas à sua prática, assim como a realização de caravanas pelos bairros de periferia à época do Natal para distribuição de presentes.

Do conjunto dessas práticas emerge a idéia de que a santidade como modo de vida se realiza como prática de doação. Fundamento da idéia de missão, este é um elemento-chave da ética cristã da santidade: enquanto os demais fazem e acumulam para si (ou para os seus), o santo é aquele que acumula gestos e práticas de doação aos outros. Esse ideal de vida pode realizar-se de formas variadas, segundo diferentes padrões culturais. Chico Xavier adotou o ethos católico, realizando-o de um modo particular.

Confundindo-se com a própria história do Espiritismo no Brasil, esse modelo por ele criado tornou-se hegemônico. O tributo a Chico Xavier se desdobra, portanto, entre vida e obra, uma construção mútua que garantiu a integração do Espiritismo ao ethos religioso nacional.



Do Espiritismo à auto-ajuda

No Brasil quase não faço mais (pintura mediúnica). Só realizo esse tipo de trabalho no exterior. As pinturas foram muito importantes na divulgação da mediunidade, principalmente nos Estados Unidos. Aqui já não há necessidade disso, existem muitos médiuns. Acabou a função. Continuo trabalhando com os espíritos, mas de outra maneira. É uma nova linha de espiritualização que estimula as pessoas a [...] usarem seu próprio poder.

Três tendências, segundo D'Andrea (2000), sinalizam a dinâmica contemporânea no campo espírita: nos grupos de clientela predominantemente popular se observa a busca de novas sínteses com as religiões de tradição afro; os grupos com clientela majoritária entre as classes médias, por sua vez, tendem a se dividir entre a busca de alternativas mais seculares de expressão da doutrina, alinhando-se, portanto, às chamadas paraciências, enquanto outros tendem à construção de novos diálogos no campo religioso, em especial com o chamado "complexo alternativo", "neo-esotérico" ou "Nova Era". A trajetória de Luiz Antonio Gasparetto ilustra essa última tendência: suas idéias e práticas mais recentes envolvem a combinação do exercício da mediunidade com práticas de auto-ajuda, tendo como tema fundamental a prosperidade.


Trajetos

Médium de formação espírita "tradicional", ele redefiniu o curso de sua trajetória religiosa nos anos de 1980. O marco inicial desse processo remonta à década anterior, período em que realizou uma série de viagens ao exterior, Europa e Estados Unidos especialmente. Estas lhe propiciaram dupla oportunidade: o contato com idéias e práticas de outros sistemas de conhecimento e a possibilidade de observação de outros valores e modos de se praticar a mediunidade. De volta ao Brasil, ele passou a manifestar publicamente suas críticas à prática da doutrina no país. O moralismo espírita constituía o principal alvo: sexo e dinheiro, segundo ele, constituem tabu no Brasil, o que ele atribui ao peso da tradição Arquivo Agência Estado católica no país, bem como à origem católica dos primeiros médiuns. Segundo ele, "em sociedades liberais como os Estados Unidos, por exemplo", o mesmo não se observa:

Quando viajo para o estrangeiro e converso com os médiuns, os espíritos conversam abertamente de sexo e seus problemas. Aqui não. No Brasil nenhum espírito toca nesse assunto [...] Aqui só dizem: "vai tomar passe, vai tomar passe!"

Donde conclui:

apesar de os espíritos terem tentado passar uma mensagem libertadora, aqui os médiuns eram católicos e a linguagem que usaram era própria de sua estrutura mental. Passou o que foi possível. O resto ficou cheio de Catolicismo... (O assunto é... Espiritismo n. 21, s/d, p. 43).

Não apenas o aspecto moral, mas também suas práticas revelam uma postura conservadora: o movimento espírita, afirma Gasparetto, "é muito antiquado [...] não sai daquela caminhada, sempre igual: não muda o jeito do passe, não muda (a forma de) tratamento, não se conhece nada de energia [...]" (Planeta, 1990, p. 11). Críticas da mesma ordem são dirigidas às obras de Allan Kardec, as quais, segundo ele, são datadas: "o importante é sua postura. Quando digo que sou kardecista é por causa da pesquisa, do questionamento, da comparação, da busca e do método utilizado por Kardec [...] Agora, o conteúdo é coisa de época [...]" (Planeta, 1990 p. 11).

O descontentamento com a "tradição" levou-o, afinal, a conjugar dois caminhos trilhados a princípio de forma independente: a carreira profissional e o exercício da atividade mediúnica. Formado em psicologia e tendo freqüentado alguns cursos em Esalen (EUA), um dos centros mais famosos de irradiação das chamadas "terapias alternativas", ele acabou redefinindo o rumo de sua carreira:

Ao retornar ao Brasil, fazendo uso já dessa aprendizagem, minha vida mudou radicalmente: de um simples psicólogo de bairro, tornei-me professor de metafísica, ministrando cursos para [...] pessoas de vários países (Gasparetto, s/d, p. 9)

A criação do Espaço Vida e Consciência, nos anos de 1980, marca essa nova etapa. Distanciando-se da prática clínica convencional, suas atividades passaram a integrar o chamado circuito "neo-esotérico": promoção de cursos, palestras e workshops que tratam de questões relativas à espiritualidade, à saúde e a problemas que envolvem as relações cotidianas - afetivas, familiares e de trabalho.

De modo geral, essas atividades se desenvolvem em clima de espetáculo. Combinando técnicas de terapia com encenação, improvisação retórica e referências que remetem a uma espiritualidade difusa, seus cursos, palestras e shows não deixam de ter feições próprias. Engraçado, histriônico, Gasparetto é dono de uma extraordinária habilidade de comunicação e de sedução. Propositadamente, fala errado. Usa palavrões. Faz trejeitos, recorre ao sotaque ítalo-paulistano para construir "tipos", em geral personagens do universo cotidiano identificados com o seu público. Agressivo, por vezes sarcástico, cria situações de interpelação direta da platéia jogando com a ironia, a surpresa, o medo do ridículo. O ambiente, porém, é descontraído. Rise muito durante as suas palestras, cursos e shows à medida que se constroem, em geral por meio de diálogos imaginários, os estereótipos que retratam o público que o freqüenta: a "dona de casa", os "filhos", o "marido", a "sogra", a "vizinha", o "chefe", a "colega de trabalho" etc.

Por mais de dez anos essa atividade foi mantida como paralela àquela desenvolvida no "centro espírita", dirigido por sua família. Gradativamente, porém, as atividades deste último também começaram a ser modificadas. O distanciamento da "tradição" foi sinalizado de início pela mudança de sua denominação para Centro de Desenvolvimento Espiritual "Os Caminheiros", mais adequada às práticas terapêuticas que passou a abrigar, que fogem ao repertório espírita, como o "passe com luzes" (prática que associa o passe espírita à cromoterapia) e sessões de "visualização criativa". Oriundas do universo das "terapias alternativas", essas técnicas introduzem na prática espírita a abordagem corporal de questões psicológicas. Novidades também foram introduzidas no campo "dos estudos": além das atividades tradicionais - ensino da doutrina e escola de "desenvolvimento mediúnico" -, passou-se a promover a atualização dos staff de voluntários por meio da promoção de palestras semanais. Realizadas por profissionais convidados, estas tratavam de temas que remetem ao universo "neo-esotérico": ufologia, astrologia, tarô, cristais etc. À clientela, por sua vez, também passaram a ser oferecidos cursos rápidos, em média de quatro semanas, voltados aos temas da auto-ajuda.

Alguns anos mais tarde essas mudanças foram complementadas pela transferência formal da direção do "centro" para Luiz Gasparetto. Ritualmente, o processo foi sinalizado pela mudança da tutela "da casa", cujo dirigente-espiritual passou a ser "Calunga", que se diz um preto-velho11. Figura que remete ao universo da umbanda, reza a norma ser este um personagem excluído do panteão espírita, já que são oriundos do meio "erudito" aqueles que figuram, de modo geral, como "guias espirituais" - pintores e escritores brasileiros e estrangeiros e, dentre os profissionais liberais, especialmente médicos.

A "mistura" do ideário e de práticas da auto-ajuda com uma personagem que tem por referência o universo mítico da umbanda resulta numa alternativa imprevista. Porém, não implica neste caso a adesão a prescrições rituais e doutrinárias desse sistema religioso. Embora sua "manifestação" seja marcada pela performance corporal e o linguajar típico desse personagem, "Calunga" constitui, na verdade, uma figura metafórica. Sua condição de outsider do panteão espírita serve à ritualização do afastamento da "tradição" espírita, autorizando, dessa forma, a incorporação de idéias e de práticas de outros sistemas simbólicos, seculares (como é o caso da "auto-ajuda") e/ou religiosos.

O passo seguinte, envolvendo o fechamento do centro em 1995, marca o definitivo rompimento da família Gasparetto com a moral espírita, no que se refere ao exercício da mediunidade como prática de doação. Desde meados dos anos de 1980 os livros produzidos por Zíbia e Luiz Gasparetto passaram a ser editados por uma editora comercial, de propriedade da família, transferindo-se assim a sua renda das atividades filantrópicas para a apropriação pessoal dos direitos autorais. Uma década mais tarde, o mesmo se observa com relação à atuação de "Calunga": uma vez fechado o centro "Os Caminheiros", este passou a protagonizar cursos e palestras no Espaço Vida e Consciência, que como as demais atividades ali desenvolvidas se destinam a grandes platéias e são pagos. Consolida-se, assim, a passagem dessa corrente do Espiritismo da ética cristã aos valores cristalizados pela ética individualista da doutrina da prosperidade.



Modos de crer

A localização dos indivíduos como lugar de elaboração da crença, reiterada pela estratégia metodológica adotada, traz à tona a vitalidade do sincretismo como uma prática de inovação e/ou invenção de tradições. Sua racionalidade só pode ser apreendida localizadamente, uma vez que as possibilidades e os limites de comunicação e articulação entre sistemas diversos de crença não são dados em caráter universal. Os exemplos apresentados reiteram essa idéia, na medida em que contextualizam as alternativas apresentadas em diferentes momentos históricos. Alternativas essas construídas por meio de articulações diversas estabelecidas com os segmentos "popular" e "erudito" do campo religioso, resultando no estabelecimento de relações distintas com símbolos e segmentos da cultura religiosa brasileira.



Notas

1 A primeira edição d'O livro dos espíritos é de 1857. Em 1860, esse título foi relançado como edição revista e ampliada. As citações deste artigo se baseiam nesta última.

2 De acordo com Aubrée e Laplantine (1990) o movimento espírita na França se desagregou rapidamente após a morte de Allan Kardec. Acusações de fraude, as novas descobertas científicas e a multiplicação das dissensões no "meio espiritualista", às quais se soma a morte dos principais líderes da doutrina entre os anos de 1920-1930 são os principais fatores arrolados pelos autores como justificativa para o seu quase desaparecimento na França. Iniciativas recentes, realizadas por pequenos grupos, a partir dos anos de 1970-1980, em algumas cidades da França, Bélgica e Canadá são apontadas como focos de reorganização do movimento. Sobre este, tem-se notícias em publicações como Le Journal Spirite, de Nancy, assim como em publicações espíritas brasileiras, como a Folha Espírita. O papel do Brasil na promoção desse movimento de difusão do Espiritismo em países de língua francesa é objeto de reflexão de algumas matérias nesta última. A divulgação do evento em questão atesta a importância do Brasil nesse sentido: o Conselho Espírita Internacional, promotor das comemorações dos duzentos anos de nascimento de Allan Kardec, tem sede em Brasília/DF. Para outras informações sobre este œltimo veja-se www.spiritist.org

3 Há mais de dez anos presente na lista dos mais vendidos, Zíbia Gasparetto é considerada atualmente "a mais popular escritora mediúnica". Outras informações sobre sua produção literária podem ser obtidas na edição de maio de 2003 da revista Época.

4 Pesquisa publicada pela revista Veja, 2 abr. 1997. Este e outros dados do censo de 1991 foram analisados e comentados por Leandro Carneiro e Luiz Eduardo Soares, 1992. A pesquisa do Ceris (Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais) mencionada se encontra em Desafios do Catolicismo na cidade. Pesquisa em regiões metropolitanas brasileiras. São Paulo, Paulus, 2002.

5 Os números subestimados dos Censos Demográficos já são assinalados pelos primeiros estudos sobre as religiões mediúnicas. Veja-se, por exemplo, com relação aos adeptos das religiões afro-brasileiras, Camargo, 1960 e para o período mais recente Almeida, 2004. Com relação ao Espiritismo, campanhas visando à declaração da adesão religiosa ao Espiritismo foram realizadas no œltimo censo (2000), como se pode verificar em artigos publicados na Folha Espírita e O Reformador.

6 Birman, 1995 sustenta a perspectiva do continuum tomando por referência o trânsito religioso dos adeptos e não as idéias, práticas e estrutura de organização religiosa, base da proposta de Cândido Procópio. Para a crítica deste último veja-se Goldman, 1985.

7 Análise mais recente desse tema é realizada por Giumbelli, 2003.

8 Os dados aqui apresentados se baseiam na minha tese de doutorado em Antropologia Social, defendida em 1999 na Universidade de São Paulo, intitulada Entre dois mundos: o Espiritismo da França e no Brasil, que foi publicada sob o título Espiritismo à Brasileira. Edusp/ Orion, 2003.

9 Por meio da mediunidade de Chico Xavier, "Emmanuel" relata algumas de suas "encarnações", iniciando a narrativa à época do Império Romano. Sua última "experiência terrena", segundo Chico Xavier, foi a "encarnação" como o jesuíta Manoel da Nóbrega, um dos fundadores da cidade de São Paulo". Veja-se a esse respeito Costa e Silva, 1995; Tavares, [1967]1991 e Machado, 1983, dentre outros.

10 Sobre esses relatos consulte-se Dantas, 1988; Rodrigues, 1987 e Prandi, 1996, dentre outros.

11 Num curso denominado "Energética", realizado em maio/ junho 1996, "Calunga" resumiu a sua biografia dizendo-se descendente de escravo no Brasil. Segundo "seu relato" foi a avó quem o iniciou nas "artes da feitiçaria". Ele "praticou o mal" durante anos, até que uma "visão" do seu orixá o levou a usar os seus conhecimentos para a cura. Sofreu muito no final da vida e nos primeiros tempos da vida pós-morte em função do mal praticado. Seu trabalho atual, junto a Luiz Gasparetto, é tido, portanto, como parte do processo de expiação de seu karma.



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Sandra Jacqueline Stoll é professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com doutorado em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP). É membro do NAU (Núcleo de Antropologia Urbana da USP) e coordenadora do Nuarp (Núcleo de Arte, Ritual e Performance da UFPR). É autora de Espiritismo à brasileira (Edusp/Orion, 2003).

SÉRIE ANTROPOLOGIA DO ESPIRITISMO

Etnografia da leitura num grupo de estudos espírita

Bernardo Lewgoy

Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Brasil

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RESUMO

O espiritismo kardecista é uma religião que confere fundamental importância ao estudo de uma literatura própria, entendida como complemento de uma revelação religiosa. Este artigo, realizado a partir de pesquisa etnográfica num tradicional centro espírita de classe média de Porto Alegre, examina e sistematiza alguns modos pelos quais os adeptos espíritas, estruturados em pequenos grupos, relacionam-se com essa tradição escrita.O grupo é fundamental na formação da identidade dos espíritas em dois aspectos: em primeiro lugar por demarcar pertencimentos internos, traduzidos ou não em diferenças de compreensão doutrinária. Em segundo lugar, é uma das instâncias de construção do expositor espírita, que ali aprende a tirar proveito de fórmulas verbais retiradas de um repertório próprio. Inspirado nas discussões sobre oralidade e escrita e na recente proposta de uma etnografia da leitura (Boyarin, 1993) tentarei mostrar que se a fala dos espíritas é construída como uma oralidade sustentada por textos, há também dimensões informais muito importantes a serem consideradas, que contextualizam e atualizam a relação com os textos sagrados nesse grupo.

Palavras-chave: cultura escrita, espiritismo, etnografia da leitura, oralidade.


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ABSTRACT

Kardecism is a religion which confers great deal of importance to the study of a specific literature, understood as the complement of a religious revelation. This article, based upon an ethnographic research in a traditional middle-class kardecist center in Porto Alegre, examines some ways through which the kardecists, structured in small groups, relate with this literate tradition. The group is fundamental in the spiritualist identity formation for two reasons: it limits the way people belong and identities, converted into differences of doctrine comprehension. Besides, it is one of the instances of construction of the spiritualist presenter, who learns to profit from the reading of texts aiming to place himself as an orator, helped by formulas extracted from a specific repertoire. Inspired by the discussions on orality and literacy and in the recent proposal of an ethonography of reading (Boyarin, 1993) I will try to show that, if the spiritualists' speech is built as orality supported by texts, there are also very important informal dimensions to be considered which contextualize and update these group's relation with sacred texts.

Keywords: ethnography of reading, literacy, oral communication, spiritualism.


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Religião de letrados, o espiritismo kardecista confere um status diferenciado — ao lado da caridade e de suas práticas rituais — à leitura e interpretação de uma bibliografia religiosa própria, que se inicia com a chamada Terceira Revelação ou Codificação de Allan Kardec, e que funciona como fonte de autoridade religiosa e constituição de identidades.1 Socializar-se no espiritismo significa familiarizar-se, estudar, falar bastante sobre os autores e obras canônicas, ou seja, ingressar num universo de debate e reflexão dominado por uma tradição religiosa escrita e letrada, permeado por uma "oralidade secundária" — no sentido de Ong (1982). A par dessa percepção da importância da cultura letrada no espiritismo, observei por um ano e meio um grupo de estudos num tradicional centro espírita, situado num bairro de classe média, próximo ao centro de Porto Alegre. O texto a seguir é uma etnografia da leitura entre espíritas, que segue a inspiração de Jonathan Boyarin (1993) e acompanha uma trajetória de discussão relacionada à "temática da oralidade e da escrita" (Goody, 1987, 1988; Havelock, 1996a, 1996b; Olson, 1997; Ong, 1982) no universo religioso.



Indicações bibliográficas como ritos de autoridade

Para as finalidades de nossa discussão, convém salientar que as indicações bibliográficas que os espíritas me faziam serviram não exatamente para estabelecer um recorte, mas para a própria introdução do pesquisador em campo. Ser iniciado é, em primeiro lugar, receber orientações de leitura, como um principiante, qualquer que seja o pretexto para a aproximação. Há, no espiritismo, uma hierarquização estabelecida que presume não tanto a desigualdade de saberes, mas a desigualdade de esclarecimentos entre os espíritas e os não-espíritas. Quando fui comprar o Livro dos Espíritos pela primeira vez, no posto de venda de livros da Sociedade Espírita Allan Kardec (a mais antiga sociedade espírita de Porto Alegre, de 1894), um senhor advertiu-me que eu deveria comprar as três obras básicas se eu quisesse estudar Kardec, que não adiantava eu comprar só uma porque elas formavam uma unidade.

Essas orientações espontâneas são comuns nesse ambiente, encaradas como um dever daqueles que têm mais tempo de espiritismo. Se a idéia de uma "hierarquia de potencial"2 funcionava como um critério de diferenciação interna entre os espíritas, a "antigüidade na doutrina" também era usada pelos informantes como uma espécie de classificação hierárquica complementar, certamente importante num sistema religioso que tanto valoriza a igualdade entre os participantes.3 Por exemplo, ao questionar uma médium sobre a palestra doutrinária que esta havia proferido, foi-me respondido: "Ora quem sou eu para dar palestra, eu só comentei um trecho do Evangelho." Outra manifestação comum combinava modéstia e auto-identificação de antigüidade: "sem a pretensão de saber alguma coisa, é essa a minha convicção dentro dos meus modestos 28 anos de participação nas hostes do espiritismo".

A despretensão, combinada ao argumento de autoridade "28 oito anos de participação" compõem uma espécie de retórica da humildade, valor de múltiplas implicações na religiosidade espírita. Ela não apenas indica a presença de uma "atitude cristã", associada à prática da caridade, como situa o médium numa posição de dependência e diminuição do eu que favorece a passagem do espírito comunicante.

Quando fazia observações na Livraria Espírita Luz e Caridade, a diretora da livraria manifestou o desejo de conhecer-me. Marcamos no centro espírita numa terça-feira à tarde, quando se realizaria uma palestra doutrinária com passes.

O Instituto Espírita Luz e Caridade, com 65 anos de existência, é um dos centros espíritas mais conhecidos e prestigiados de Porto Alegre. Localizado num bairro de classe média da capital gaúcha, ele conta com dois prédios, divididos segundo a finalidade de uso: no primeiro funcionava o Departamento de Assistência Social, com creche para cerca de cem crianças, atividades de oficina (corte e costura e restauração de móveis) e organização de eventos beneficentes. Na entrada do terreno situava-se o prédio do Departamento Espiritual, onde se concentravam as atividades cotidianas dos freqüentadores da instituição: palestras, passes, atendimento fraterno, preces e irradiações (públicas), desobsessão, grupo de estudos e desenvolvimento mediúnico (privativas). O térreo contava ainda com uma pequena biblioteca e salas para as atividades de pequenos grupos, que ocorriam em datas e horários semanais fixos, respeitando a grande ênfase que os espíritas atribuem à pontualidade.

O centro, austero e despojado em seus tons de cinza e branco, era ornado com quadros de avisos, alguns cartazes, uma estante envidraçada com capas de edições antigas de livros de Allan Kardec, Gabriel Dellane, Camille Flamarion e Rochester — em tudo enfatizava a simplicidade do ambiente.

Após assistir à palestra e receber o passe, fui convidado para uma conversa, regada a chá e bolinhos. Estavam presentes no encontro os senhores Jader e Alberto, ambos diretores do centro, acompanhados de suas esposas, Andréa e Graça. Fui inquirido não apenas sobre meu trabalho, mas também sobre minha relação pessoal com o espiritismo, onde o mero "interesse científico" se afigurava pobre como justificativa. Nesses contatos iniciais eu registrava uma relação inversa à curiosidade de meus pares antropólogos sobre minha escolha de objeto, ainda que a grande questão fosse, para ambos, a de minha possível identidade espírita. Enquanto para os antropólogos assumir uma condição de espírita comprometeria o necessário distanciamento, para os espíritas isso era a condição para o bom entendimento da doutrina, pois "a razão não poderia deslanchar se não andasse de mãos dadas com a fé".

Uma série de provocações foram lançadas durante a conversa, como uma espécie de teste de minhas posições, especialmente quando falavam de Chico Xavier e da impossibilidade de uma pessoa razoavelmente esclarecida não reconhecer a autenticidade de seu trabalho mediúnico. Não afrontando nenhuma das afirmações e sabendo de minha curiosidade em participar de um grupo de estudos e não meramente testemunhar sessões mediúnicas, meus interlocutores enquadraram-me na classificação de simpatizante da doutrina espírita. Como percebi, mais tarde, no grupo se delineava uma contínua expectativa de minha adesão à doutrina, categoria nativa que designa a conversão ao espiritismo e que remete à centralidade da noção de livre-arbítrio nesse sistema religioso, onde a própria aceitação da doutrina não pode prescindir do exame racional de seus postulados, ainda que uma situação de sofrimento ou perda possa ser considerada a motivação inicial para transpor a entrada de um centro espírita.

Fui conduzido à presença de Alberto, um homem de cerca de 50 anos, militar aposentado e dirigente do departamento espiritual do centro. Após o chá, ele perguntou-me sobre minha formação. Sem chance de lhe dar uma explicação maior sobre o teor do trabalho antropológico que desenvolvia, Alberto sentenciou: "O livro mais importante para você ler é A Gênese, de Allan Kardec. Várias das coisas que poderiam te interessar estão aí."

Parecia-me absolutamente inusitada a indicação, tão precisa a partir de tão poucos elementos. Mais tarde, vim a compreender que ele me tratou como alguém que ali fora em busca de uma orientação, dentro do continuum que vai do consolo à instrução. Eu, como antropólogo, não escapava à abrangência dessa certeza. Se o que me impelia a procurar o centro poderia ser o pretexto de uma pesquisa, descartada a alternativa de ser um adversário da doutrina, restava-me o lugar de um "espírita em potencial". Dali para diante, eu iria aprender a doutrina espírita e teria o mesmo tratamento de todos os principiantes, devendo me submeter às normas de funcionamento do grupo. Meus informantes alternavam, assim, curiosidade com relação à pesquisa com uma ascendência de veteranos em face da minha posição de neófito, sempre na expectativa de uma adesão.



Um grupo de estudos espírita

Fui encaminhado ao grupo de Andréa, sua esposa, que se realizava às quintas-feiras, às 18h30. No dia em que lá cheguei, entrei numa sala onde vi cerca de dez pessoas à volta de uma mesa. Expliquei ao coordenador o que eu estava fazendo ali, ao que rapidamente ele me interrompeu afirmando que aquele não era o grupo de Andréa, mas eu poderia ficar ali, se quisesse. Meio constrangido aceitei o convite e, pelo que mais tarde eu entendi, aquela era uma decisão importante e eu não teria a liberdade de ficar alternando entre um grupo e outro grupo. Os grupos não se diferenciavam apenas pelo que eu supunha ser a diferença entre principiantes e adiantados, mas definiam pertencimentos e redes dentro do centro espírita, marcavam identidades, que se processavam principalmente pela filiação a um certo estilo de interpretação da doutrina espírita. O grupo de que participei ostentava um tipo de leitura mais "liberalizante", destacando o cunho social de algumas posições doutrinárias e, esporadicamente, opunha-se ao que consideravam o "conservadorismo" e "visão fechada" do "outro grupo".

Ainda que não houvesse homogeneidade de posições, a participação num determinado grupo de estudos tem uma nítida função identitária no universo espírita.

Certa vez Graça (a esposa do diretor do centro), que participava do "outro grupo", juntou-se a nós para a reunião de estudos. Conhecida por sua capacidade de polarizar e assumir posições bem marcadas, sua presença provocou uma viva reação de Ronaldo, o coordenador, que lhe indagou: "O que é que a senhora está fazendo aqui? O seu lugar é no outro grupo." Mesmo após verbalizado este sentimento de invasão de fronteiras, Graça permaneceu na sessão e Ronaldo terminou por provocar um debate. Discutiu-se a maturidade do povo brasileiro para tomar suas decisões e a confiança que se deveria depositar nos seus governantes. Graça, então, posicionou-se afirmando que

quando o povo, tal como uma criança, não está maduro e tenta assim mesmo agir, a situação acaba numa bagunça, numa desordem; daí porque era necessário um governante com mão firme, como se fosse um pai severo, que tomasse para si a responsabilidade de tomar decisões para o bem daquele povo.

A fala logo foi identificada com a "simpatia pelo autoritarismo", e iniciou-se um debate acirrado, em que a própria existência de um carma coletivo chegou a ser invocada para interpretar a conjuntura brasileira. Sem deixar de reconhecer o interesse implícito do debate, importa ressaltar que, provocado pelo diretor do grupo, ele serviu para explicitar e marcar diferenças para os participantes, atualizando um jogo interno de identidades e pertencimentos dentro do centro.

A relação com as fontes escritas era outro importante caminho de elaboração da identidade do grupo. A filiação a uma determinada exegese da doutrina espírita, em que a ênfase diferencial em determinadas referências, mais especificamente o que vale enquanto complementação às obras básicas, é tão importante quanto o estilo de interpretação realizado.

Tanto Ronaldo quanto seu amigo Aldair — químico, 28 anos de espiritismo — criticavam uma aceitação tida como "deslumbrada" de Emmanuel (o mentor espiritual de Chico Xavier) através de alusões ao que consideravam "frases estereotipadas", como "Emmanuel maravilhoso". Sem negar frontalmente a sua importância, os coordenadores insistiam que essa atitude de deslumbramento era contrária ao sentido do espiritismo, por obscurecer o exame racional das mensagens e induzir ao fanatismo. Os coordenadores alegavam que muita gente se escorava em clichês, sem conhecer direito nem a obra de Kardec, nem a de seus sucessores.

Como que chamando a um retorno às fontes originais da doutrina, Ronaldo afirmou ainda que: "o espiritismo, para nós, é a obra de Kardec mais as obras de Léon Denis e Gabriel Dellane".

O que certamente seria diferente se o indicado como complementação a Kardec fosse Chico Xavier.

As sessões do grupo de estudos ocorriam semanalmente, com uma freqüência média de cerca de dez pessoas. Havia pessoas que se sentavam à volta da mesa e outras que preferiam permanecer numa posição mais periférica, numa segunda fileira de cadeiras. A proximidade dos participantes ao coordenador indicava, antes de tudo, uma disposição de intervir no debate.

Alguns liam os textos e outros ficavam com os olhos fechados, a testa franzida, a cabeça levemente arqueada para baixo e não eram perturbados pelos demais enquanto assim estivessem. O que me parecia uma preparação para o transe era um estado de concentração. Os espíritas acreditam que uma interrupção brusca de situações de concentração ou transe pode acarretar prejuízos físicos e emocionais ao médium.4 Como em outras situações, o médium que se concentra pode estar também objetivando a manutenção de vibrações positivas para o bom andamento da reunião. A prece, como já havia assinalado Cavalcanti (1983), é associada a uma interlocução com o alto: portanto, aquele que se encontra num estado visível, lido pelos demais como tal, é retirado do circuito de interlocutores ratificáveis, por se encontrar num "diálogo" de maior relevância.

Dentro do sistema de crenças espírita, toda atividade ritual demanda uma preparação do ambiente em que encarnados colaboram com desencarnados para uma faxina espiritual do ambiente, que acontece antes da sessão, equilibrando os fluidos presentes. Há sempre necessidade de um tempo entre as diversas atividades, a fim de que esse equilíbrio possa se restabelecer. Por exemplo, o grupo de estudos não funciona no mesmo dia da reunião de desobsessão, pois há o risco de que o ambiente não esteja ainda limpo das presenças espirituais que ocuparam o espaço, por isso a necessidade de um tempo razoável entre uma e outra atividade.

A atividade do grupo de estudos dividia-se em: 40 minutos de leitura e debate de uma passagem do Livro dos Espíritos e pouco mais de uma hora de leitura e debate de uma cartilha didática produzida pela Federação Espírita Brasileira (FEB).5 Com todas as atividades espíritas, a pontualidade era extremamente valorizada, ainda que nem sempre houvesse concordância quanto à sincronia dos relógios. A função do diretor do grupo não se esgotava no encaminhamento da atividade, estendendo-se a observações morais, por vezes de reprovação a atrasos, por vezes comentários sobre os participantes, onde uma a ironia podia se fazer presente. Com o tempo compreendi que a admoestação e a ironia compunham jogos de poder e autoridade que eram constantemente reiterados. Em certa ocasião Ronaldo advertiu Antônia pelo atraso de 15 minutos. Esta médium, muito respeitada no centro, retrucou: "no meu relógio não há atraso, o seu é que deve estar com algum problema".

Como numa sala de aula os participantes do grupo eram levados a compreender que deviam uma espécie de satisfação por seus comportamentos.

As jocosidades e os deboches, ainda que não predominassem, podiam escoar tensões e aludir a rivalidades e diferenças pessoais no interior do grupo. No espiritismo, ainda que se possam fazer comentários sobre atitudes que levem a crer no atraso espiritual de alguém, a regra é não fazer comentários sobre o estágio espiritual de evolução de alguém. O humor é, por vezes, o único caminho para realizar as avaliações mútuas e comparações interpessoais, como no seguinte exemplo: "O Zeca que é o mais evoluído de nós, não tem esse problema dos podres do passado."

Trata-se aqui de uma alusão irônica aos comentários que fluem no centro sobre o comportamento moral e espiritualidade desse médium. A ironia, ao explicitar comentários não-autorizados sobre a evolução espiritual de um colega, funciona como um recurso para inverter no sentido igualitário essa hierarquia presumida: "Isso de problema de casamentos provacionais, que a maioria das pessoas passa, não se aplica ao Clóvis e à Antônia, que são o casal vinte aqui do grupo."

O humor dirigido a esse casal, muito valorizado pela percepção da qualidade de seu vínculo, cumpre a mesma função do exemplo anterior. No entanto, nem sempre a jocosidade é bem recebida. No segundo caso ela foi interpretada como sarcasmo, tendo sido rispidamente respondida por Antônia, dizendo "Não é verdade. Nós também temos os nossos problemas" sem a sinalização verbal do sorriso, quebrando assim o jogo de fala humorístico que havia se instaurado.

Num sistema de valores tão marcado por controles mútuos, por incentivos à extrema responsabilização da expressão e pelo decoro igualitário, é compreensível que, nos debates, seja estimulada a expressão bem marcada de posições por vezes fortes e explicitamente antagônicas, como tantas vezes testemunhei. Por menos importante que pareça, a expressão verbal é sempre carregada de sentido no espiritismo. Por conseqüência, enfatiza-se muito a responsabilidade individual com a linguagem, mas o decoro igualitário interdita a expressão pública de conflitos e diferenças pessoais que não trilhem o caminho da divergência fraterna de opiniões: a expressão verbal é idealmente marcada por um respeito absoluto ao outro e à sua individualidade. Cumpre assinalar também que, nas condições de um grupo que sobrepunha laços de amizade e conhecimento prévio, a sustentação permanente de um ethos de formalidade tornava-se extremamente penosa. Essas jocosidades aludiam eventualmente a diferenças de gênero, status matrimonial, profissão, faixa etária e à política. Expulsas pela porta estreita do igualitarismo kardecista, as diferenças reapareciam por meio de inserções jocosas durante os diálogos.

Não quero passar a impressão que estive alheio a essas tensões, que me remetem à citação que Bárbara Smith (2002) faz de Michael Thompson (1979) sobre os estilos culturais de lidar com monstros:

Por exemplo, algumas pessoas e comunidades parecem caracteristicamente fechar os seus portões para excluir monstros, outras tentam convertê-los, ainda outras estão preparadas para alargar ou rearranjar suas casas para reabsorvê-los e, claro, algumas pessoas e comunidades regularmente vão em frente e os matam. (Thompson apud Smith, 2002, p. 17).

Não sei se eu era considerado um tipo de monstro pelos informantes e se eles têm uma estratégia típica de lidar com monstros além do ritual de desobsessão, onde estes são racionalmente convencidos e docemente doutrinados a seguir os medianeiros espíritas cristãos. Também o monstro da ilegitimidade social e o sentimento de minoria acuada pela opinião dominante parecem estar há décadas afastados dos espíritas, mas a entrada de alguém como um antropólogo sempre pode reacender a memória coletiva da perseguição, ativando os mecanismos reativos da prova e da demonstração da verdade de seu sistema.6



Leitura, diálogo e formação de orador espírita

O esquema da sessão dividia-se em prece de abertura, leitura oral de trecho do capítulo, comentários do coordenador e debate, leitura e debate da cartilha didática e prece de encerramento, feita sempre por um membro do grupo a pedido do coordenador. Também as leituras orais são solicitadas pelo coordenador aos participantes, assim como comentários dos trechos lidos.

O coordenador introduzia os debates e impedia a dispersão em conversas paralelas e corrigia o rumo da discussão quando julgava que havia um desvio do ponto central. Em vista do imperativo de formação do expositor espírita, enfatizava-se a ostentação de um modelo de expressão oral claro e de retórica didática, a ser seguido pelos demais. A fala de Ronaldo era gramaticalmente correta, sem gírias ou maneirismos de linguagem, em tudo enfatizando a presença de um modelo letrado e escolar em sua expressão.

O debate iniciava-se pela leitura oral do Livro dos Espíritos, sendo examinado e discutido parágrafo a parágrafo. Um colega lia a passagem selecionada e o coordenador inquiria se ele, ou outra pessoa desejava comentar o trecho. De qualquer forma, Ronaldo sempre retomava a palavra buscando a generalização, ainda que ela não necessariamente dissesse respeito à análise do trecho. Cada vez que se abrisse o debate, deveria se obter alguma conclusão, assimilada à noção de ensinamento. Por exemplo, discutiu-se um dia uma passagem do Livro dos Espíritos sobre a oposição dos cientistas ao espiritismo. O coordenador iniciou o debate afirmando que "há verdades relativas no texto, pois ele foi escrito há mais de cem anos e há coisas que mesmo os espíritos da época não tinham condições de entender".

Após um breve debate sobre as relações entre ciência e espiritismo, o coordenador pediu para lermos novamente uma frase sobre sociedades na espiritualidade superior:

No mundo dos espíritos também há uma sociedade boa e uma sociedade má; dignem-se, os que daquele modo se pronunciam, de estudar o que se passa entre os espíritos de escol e se convencerão de que a cidade celeste não contém apenas a escória popular.

Pela leitura que eu havia feito da Parte 11 da Introdução do Livro dos Espíritos, concluí que se tratava de uma resposta a determinadas objeções, como corolário de um argumento maior, o de que o espiritismo não pertence à ciência ordinária, mas estaria situado num patamar evolutivo superior. Para o grupo, outras implicações deveriam ser tiradas da discussão. Do que eu julgava ser um argumento de inspiração comteana, o coordenador inferiu platonicamente que

Nosso mundo é uma cópia pobre do que ocorre na espiritualidade superior, tanto em suas faixas mais elevadas quanto nos setores mais baixos, que também são organizados. Ambos atuam sobre nós em equipes (gangues, fortalezas). Na espiritualidade inferior há equipes que se chamam a si próprias de justiceiros, eles atuam em todo o globo, especialmente sobre aquelas pessoas com quem eles supõem ter dívidas com eles, obsessionando-os. Há as equipes de espíritos evoluídos que controlam a liberdade dos menos evoluídos (atrasados), mas respeitam o seu livre-arbítrio, mesmo naqueles casos em que eles atuam por obsessão aos encarnados. Não há interferência direta até por que o crescimento geralmente se dá pela dor e pelo sofrimento, mas depois até agradecemos por isso.

Elvira, outra ativa participante do grupo, interveio dizendo que "a gente vem para ser testado. Tudo está programado pela evolução, para ver como tu agirás para evoluir."

Ao que o coordenador complementou:

É, a gente vem para ser testado — os obstáculos têm origem em nossas vidas passadas ou nessa vida. Depois dos 20 anos, já começamos a ter dívidas acumuladas desta vida. Depois dos 40 ou 50 anos, já começamos a resgatar dívidas acumuladas nesta vida.

Do alto de meu etnocentrismo cartesiano, o encadeamento da argumentação na Introdução do Livro dos Espíritos não se coadunava nem com o comentário isolado de cada parágrafo (ou de pequeno conjunto de parágrafos) nem com a forma como o grupo debatia o texto. Não que o debate estivesse desligado de uma ordenação referida ao texto: pressupunha-se uma continuidade metódica na leitura da obra de Kardec, bem como a incorporação progressiva das verdades contidas no texto. Assim, na semana seguinte, a leitura deveria iniciar exatamente do ponto onde se havia parado na semana anterior. Não se buscava uma incorporação linear de conteúdos, mas uma aplicação prática. A leitura no grupo servia de um pretexto para a discussão, que nunca deveria ser restrita ao texto: este abria o debate, mas não o circunscrevia.

O exercício do comentário visava extrair um ensinamento doutrinário em cada passagem lida. A regra implícita de exegese no grupo de estudos era sempre procurar totalizar, extrair um ensinamento, mesmo que a partir de fragmentos de textos. Numa visão de mundo que não admite a existência do acaso, não há fragmentos reais, eles sempre podem ser recuperados por uma teleologia implícita que cabe ao exegeta desvelar, mas essa exegese presume um método espiritual de abordagem do texto, antes que um conjunto lógico de instruções. Um texto perfeito remeteria à dificuldade de entendimento ao leitor, que não teria tido a capacidade, a humildade ou mesmo a determinação necessária para lograr êxito na interpretação. O máximo que se salientava era a inadequação tópica de uma ou outra afirmação. Como o coordenador enfatizava, "como o Livro dos Espíritos é a doutrina dos espíritos, mesmo a eles não foi permitido saber tudo e sim aquilo que, de acordo com a sua época e o seu grau de evolução eles poderiam entender".

A possibilidade de fazer correções no texto, ainda que abrisse uma janela para a crítica histórica da doutrina, não arranhava a crença na predominância de verdades doutrinárias essenciais. Não havendo uma dúvida metódica de fundo e presumindo-se que o essencial estava estabelecido, simplesmente não fazia sentido insistir numa atitude de dúvida sistemática perante o texto, típica dos céticos e materialistas. Ao seguir os gestos de leitura inaugurados pelo próprio Kardec, na exegese do texto bíblico, as possíveis contradições ou incompreensões eram ou recuperadas pela interpretação alegórica ou subsumidas pela ênfase no sentido espiritual, na totalidade ou no ensinamento principal presente nas linhas ou entrelinhas do texto. O ensinamento, ou sentido espiritual significa que o texto lido é uma ponte que não contém, mas permite o acesso ao conhecimento, se acompanhado da atitude espiritual adequada.7 Nos gestos de leitura dos membros do grupo não era apenas um processo intelectual que estava em curso, mas um crescimento em que o próprio espírito está implicado, seja pela assimilação de conteúdos, seja também pela circulação de vibrações no ambiente, seja ainda pela troca de experiências realizada no grupo.

Um efeito esperado dos ensinamentos adquiridos, como conhecimento com implicações morais e espirituais, era a regeneração ou reforma íntima do indivíduo. A mera erudição, isolada da moralização da conduta, era muito criticada no grupo, de onde se pode compreender as repetidas críticas feitas aos "cientistas" e aos "intelectuais", reprovados por não associarem o seu conhecimento a uma moralidade cristã cuja expressão máxima é fornecida pela revelação espírita.

No grupo era atualizada simultaneamente uma visão moral de indivíduo, como agente moral livre e responsável por suas ações, e outra, associada, em que prevalece um discurso psicologizante sobre o "interno", sobre o indivíduo e suas emoções. A reforma íntima era uma importante vertente de elaboração do interno, como na prece, sendo recuperada na órbita de uma apreciação individualista, que a entronizava como condição de autenticidade das ações externas. Alguns sustentavam a posição do "tudo ou nada": ou a reforma íntima é integralmente levada a cabo ou infirmada pelos pequenos defeitos. Outros, mais liberais, encaravam-na como meta a ser progressivamente atingida apesar dos pequenos defeitos e retrocessos.

Os exemplos eram usados em dois sentidos fundamentais: um era o exemplo de caráter mais técnico, no qual se compartilhavam narrativas de intercâmbio mediúnico, suas dificuldades e soluções, e outro, de caráter moral, que relacionava a doutrina espírita a conjunturas políticas, a exemplos pessoais, a notícias e a fatos do cotidiano.

O comentário de caráter técnico era freqüentemente exemplificado por narrativas orais. Certa vez, comentando o trabalho de doutrinação, Ronaldo contou que:

Numa sessão de desdobramento, uma senhora entrou em contato com um faraó egípcio e seus discípulos, que estavam estacionados há milhares de anos sem evoluir, seguindo-se um trabalho de meses de esclarecimento.

Há nessas narrações o estabelecimento de um jogo especular em que o escrito remete à experiência e vice-versa, num trânsito circular incessante através do debate.

Um segundo recurso retórico freqüentemente utilizado era o da concordância com avanços da ciência, como na afirmação "a descoberta dos cromossomos já estava prevista nos romances de André Luiz".

Esta imagem de ciência poderia ser complementada por uma idealização rousseauniana da natureza, geralmente tida como perfeita em contraste com a "irracionalidade" e o "atraso" das condutas humanas. A notícia do índio queimado por jovens em Brasília provocou o seguinte comentário de Antônia:

Vejam, enquanto a macaca, que é irracional, salvou a criança humana, vejam o que esses meninos fizeram com o índio.Às vezes eu me pergunto se nós não somos as criaturas menos evoluídas deste planeta, que nós ainda teremos muitas encarnações para aprender a lição de Jesus "amai-vos uns aos outros".

O comentário de notícias não apenas elaborava a exegese doutrinária do mundo à luz da doutrina espírita, como atualizava o espiritismo aos dilemas morais e conjunturas que marcavam os participantes.

O trabalho de interpretação de contextos extratextuais à luz da discussão oportunizada pelos textos sagrados tinha várias semelhanças com a escola religiosa judaica em Nova Iorque, discutida por Jonathan Boyarin (1993), apontando para uma característica comum a cursos e seminários de formação religiosa de leigos. Esse é o lugar de uma leitura comunitária e espiritual.



Igualdade doutrinária e hierarquias informais


As narrativas e exegeses efetuadas no grupo evidenciavam ainda o componente hierárquico do discurso dos espíritas, fundado na preeminência do espiritismo sobre as demais religiões e, por conseqüência, dos espíritas sobre as demais pessoas. Isso sempre era um tema polêmico no grupo. Alguns sustentavam que "dizer-se espírita nada garantia, assim como conhecer todos os preceitos evangélicos, se estes não fossem aplicados diariamente". Como explicar a envergadura moral de muitos não-espíritas, de espíritos missionários, como Gandhi ou Madre Teresa de Calcutá, originários das fileiras de outras religiões ou mesmo de pessoas comuns, conhecidas dos membros do grupo, espiritualmente mais elevadas que muitos espíritas? Em alguns momentos levantava-se a questão:

— E se os nossos governantes fossem espíritas? Será que isso não levaria à solução de muitos problemas?

Outro: - Mas declarar-se espírita não é garantia de nada. O sujeito pode ser de qualquer religião. Quantas barbaridades já se fizeram em nome da religião. Não é um governante, mas é dentro de todos nós que se deve promover a mudança.

Assim, a superioridade de esclarecimento de nada valeria, na visão de alguns membros do grupo, se não fosse associada uma responsabilização moral maior, com a exigência de um programa de reforma íntima. Ainda que a referência central fosse a doutrina espírita e os argumentos invocados devessem gravitar à volta desse referencial, os enunciados válidos e os argumentos brandidos davam um colorido fortemente pessoal à discussão. Não estava em questão apenas o aprendizado de um conjunto de conteúdos intelectuais, mas a capacidade de articular a doutrina com o vivido do fiel. Nesse sentido, a autoridade da fala decorria de fatores extradiscursivos — como a credibilidade do falante como médium e trabalhador reconhecido, sua antigüidade no espiritismo — e discursivos, como a articulação dos enunciados, a clareza de sua exposição e a força racional de seus argumentos.

Um jovem casal, com pouco tempo de grupo tendia a monopolizar a palavra, polarizando em todos os debates. Alguns membros mais antigos do grupo se incomodavam com as falas freqüentes dos dois e uma pergunta que se ouvia era "quem é ele?" ou então "de papo ele é muito bom, quero ver na prática", que poderia ser traduzida como "com que direito ele usa a palavra como um interlocutor ratificado dentro deste grupo?" Sendo o espiritismo um sistema formalmente igualitário, a estruturação hierárquica é implícita, o que se estende ao direito de uso e ao modo de expressão verbal, cabendo aos participantes ter o senso de seu lugar nos grupos de que participam. Ali conta mais a trajetória no espiritismo, as referências morais de cada um, do que o que era percebido como verbosidade vazia, através de uma linguagem hierárquica antiintelectualista que controlava moralmente os eventuais brilhos não-autorizados dentro do grupo.

Como nas demais situações no centro espírita, a hierarquia era presente de forma sutil, mas nunca explicitada, por contrariar a ideologia igualitária que permeia esse sistema religioso. Maria Laura Cavalcanti (1983), ao discutir as concepções nativas de indivíduo e pessoa, já havia chamado a atenção para a existência de uma hierarquia de potencial no espiritismo, ao que acrescentei acima a "antigüidade" como variável informal. Importante ainda é a coincidência entre hierarquia e responsabilidade no espiritismo: um respeito hierárquico devido a um médium corresponde a uma expectativa sobre o desempenho de sua função, assim como um maior controle moral sobre a sua vida pessoal.

Como anteriormente colocado, as posições hierárquicas no espiritismo sobrepõem a liderança carismática (implícita na hierarquia de potencial entre os médiuns) e a liderança burocrática (em que o que importa é a responsabilidade funcional do cargo), resultante da tensão entre a valorização diferencial dos médiuns e a ênfase igualitária da organização.

Estando a crítica racional prevista no espiritismo através da noção de "livre-arbítrio", é normal que os debates em torno da superioridade do sistema espírita sejam transpostos para uma hierarquização das diferenças intelectuais entre os homens como uma questão de aceitação da revelação espírita. Ora, como isso implicava numa óbvia dificuldade de assimilação da superioridade de um não-espírita em face de um espírita, esta era sempre passível de ser compensada, em outro plano, pela intransponível desigualdade de esclarecimentos, que reservaria um lugar exclusivo aos espíritas.

Isso converge com as observações de Laplantine e Aubrée (1990), para quem o espiritismo brasileiro é mais relacional e familiar do que o espiritismo europeu, mais centrado na comunicação, e com as conclusões de Sidnei Greenfield (1999), para quem esse familialismo repõe no plano religioso as tradicionais relações clientelísticas da sociedade brasileira. Como em outras instituições que emulam uma doutrina estatal na sociedade brasileira, como a burocracia do serviço público e o exército, uma ideologia marcadamente igualitária é muitas vezes relativizada por hierarquizações oriundas de uma dimensão particularista e personalizada, tão resistente quanto incapaz de justificar-se abstratamente.



Preces e palestras: o orador espírita em ação


Todos os trabalhos espíritas são abertos pela prece, concebida como uma relação direta de elevação e contato com a espiritualidade superior (Cavalcanti, 1983). Enfatizava-se o aprendizado de um timing, de um preciso comportamento lingüístico e de uma determinada atitude corporal. A técnica corporal era conhecida: as pessoas fechavam os olhos e se concentravam, com as mãos sobre a mesa ou em cima das pernas junto aos joelhos, manifestando respeito, humildade, subordinação e elevação. O timing era variável, mas não eram recomendadas preces longas no grupo, perfazendo no máximo um ou dois minutos. A prece era marcada por uma entonação de súplica, pausada, em voz alta e falada na primeira pessoa do plural, o chamado "plural majestático". Eram permitidas improvisações em torno de um molde formular, referido ao objetivo da reunião. Se o estudo estava em pauta, deveria haver frases que falassem disso na prece, ainda que sem um texto predeterminado.

Os termos adotados na prece eram retirados de um repertório de máximas e expressões que sinalizavam "o religioso" por uma analogia com um modelo erudito, onde abundavam expressões compósitas como "campo energético propício", "mercadejávamos" ou "veneranda entidade". Este uso religioso da linguagem está decalcado numa certa visão literária e retórica da expressão verbal, marcada por arcaísmos, predileção por categorias compostas (por vezes de três vocábulos) e o emprego recorrente de máximas morais durante os atos de fala. No caso da prece, há uma certa ordem hierárquica de mediadores que devia ser respeitada, de acordo com a importância atribuída a cada um:

Pedimos a Deus, nosso pai maior, a Jesus, a Allan Kardec e aos amigos espirituais que permitam o sucesso deste momento de meditação e aprendizado, permitindo que um campo espiritual positivo harmonize as nossas energias, sintonizadas no amor, na dedicação ao próximo e no desejo de aprender, e que somente espíritos de luz iluminem os nossos pensamentos neste trabalho tão importante que agora se inicia.

Em primeiro lugar, a prece era oral e coletiva, e podia ser complementada pela recitação grupal de uma prece decorada, como um pai-nosso. Nesse sentido, ela seguia uma estrutura formular aberta, que viabiliza adaptações locais e individuais dentro de um esquema que todos conhecem e manejam. O espiritismo valoriza uma atitude tida e vista como interior, daí a liberdade estimulada de improvisar em torno do tema. A seqüência escalonada de referências era protocolar: não se admita uma elocução do tipo "agradecemos a Deus, aos amigos espirituais e a Jesus", por desrespeitar a ordem hierárquica do maior ao menor.

A prece é um tema de ampla elaboração na literatura e na fala dos espíritas, guardando diferentes conotações além da referência comum de uma disposição espiritual de ligação e diálogo com um plano espiritual superior. Nesse sentido, ela é um importante pólo de reflexão sobre contatos espirituais, comportando diferentes usos e crenças subjacentes. Na prece, o fiel estabelece um contato com o alto, mas dentro da concepção espírita de pessoa (um compósito relacional de forças e entidades atraídas por afinidades e por carmas comuns) ela é concebida como irradiadora de uma espécie de força que atrai espíritos de diversos tipos. Isso tem por conseqüência a produção contínua de um imaginário espírita sobre a prece, que tematiza a sua função e aplicações nas mais variadas circunstâncias. Certa vez Ronaldo afirmou que em meditação havia concluído que sempre que se orar "deve[-se] fazer uma dupla oração, pelo irmão na mesma faixa vibratória, sendo também necessária uma terceira prece, pelos irmãos obsessores, encarnados ou desencarnados".

O coordenador salientou também a importância de orar em voz alta, "senão os espíritos de baixa evolução, que necessitam de som, não escutariam". Abriu-se, então, uma ampla discussão sobre as visões e as práticas de oração dos membros do grupo. Para alguns, a prece não era apenas uma invocação ou reza, mas um estado intuitivo a ser mantido 24 horas por dia. Para outros, isso era dependente do dia e do estado espiritual de cada um, de acordo com o clima que se percebe se faz um tipo de vibração e de prece. Elvira, a participante mais velha do grupo, cerca de 75 anos, relatou que costuma fazer preces pela manhã e à noite, antes de dormir. Certa vez ela achou que estava fazendo preces demais e diminuiu um pouco a quantidade de orações. Elvira relatou então que ficou doente por ter baixado a guarda ("com muitas dores no corpo, fechei os olhos e só via escuridão") e os inimigos espirituais puderam agir. Teve que rezar muito, mas só conseguiu se desvencilhar da enfermidade com a ajuda de uma sobrinha, também médium, que lhe ajudou a fazer uma limpeza na casa.

Outros membros afirmavam que a prece nem necessita de palavras, é mais um estado, um pensamento amoroso que se difunde pelo fluido cósmico universal. Novamente aqui se expressa um conjunto aberto de crenças que caracterizaremos como complexo da prece. Em primeiro lugar, como o espiritismo coloca o pensamento numa posição englobante em relação à linguagem, é compreensível que a prece possa ter eficácia mesmo sem palavras, na forma de um estado.

A referência ao coração introduz um novo elemento no complexo da prece, ligado à concepção espírita de pessoa. O coração simboliza uma disposição ou atitude de fé genuína, que é condição de possibilidade da eficácia das preces. Ou seja, aponta para o uso de uma vontade individual livre não inteiramente identificada com a racionalidade, no sentido de um "fervor espiritual". Os kardecistas acreditam que a fé deve compatibilizar-se com a razão, mas agregam que "a fé sem razão leva ao fanatismo, e a razão sem fé levaria ao materialismo e ao ateísmo". Na tradição cristã ali cultivada, a dimensão do "coração" lembraria a atitude de simplicidade evangélica contra a hipocrisia, a sabedoria contra a ciência sem alma, sendo, portanto, uma instância permanente de endosso, junto com a esfera da caridade, da atitude crítica contra aqueles espíritas concentrados em pesquisas intelectuais.

Isto se coaduna, como já discutimos, com a separação espírita de linguagem, tida como um modo de comunicação dispensável para os espíritos, bastando-lhes o pensamento. A rede de oposições categoriais acionadas (que colocamos sob a rubrica da tensão emblemática espírito versus letra) é também derivada da oposição hierárquica pensamento versus linguagem — expressão da oposição maior espírito versus matéria — em que todo o veículo lingüístico, como uma muleta da ordem da matéria, é apenas um suporte instrumental para a comunicação do pensamento, estando em posição englobada e dependente da atuação deste, que lhe confere valor e sentido.8

A oposição entre prece improvisada versus prece decorada introduz a necessidade de um novo contexto formular. Não se decora uma prece, mas, do contrário, exercitam-se balizas verbais e retóricas, bem como a marcação do tempo e da modulação da voz do oficiante. O aprendiz deve empregar injunções mnemotécnicas que levem em consideração o tom de voz e as recorrências rítmicas e semânticas que ele observa quando da realização da oração pelos veteranos. No grupo, a prece de encerramento era feita por qualquer um dos participantes, sempre a pedido do coordenador, sem um agendamento prévio, a fim de estimular essa construção formular de preces improvisadas. Os principiantes tendiam a fazer preces mais curtas, mas já mantinham a sua estrutura mínima: referência ao tema do estudo, seqüência hierárquica de agradecimentos do espírito de maior hierarquia ao de menor menor hierarquia, atualização do uso especial de linguagem através de vocábulos compostos incomuns na fala corrente, tom de voz modulado para a oração, emprego do plural majestático.

Ainda que a prece não necessite compulsoriamente de palavras, os espíritas consideram-se eticamente imbuídos de levar instrução e consolo aos irmãos encarnados e desencarnados mais próximos da matéria. Como os que estão nesse estágio de evolução ainda precisam de som, a forma lingüística, a reza em voz alta, também se faz necessária. Não há preces obrigatórias ou horários compulsórios para a sua realização, mas os livros espíritas citados pelos membros do grupo são unânimes em recomendar o despertar e o momento antes de dormir como o mínimo recomendado. A reza pela manhã suplica pela harmonia do dia, e a feita à noite — associada à leitura e meditação de trecho do Evangelho — relaciona-se à crença no descolamento do espírito do corpo durante o sono, sujeitando a pessoa a contatos espirituais inusitados e arriscados.

Havia, no grupo, diferenças de estilo e concepções de prece, com nuanças etárias e geracionais. Enquanto os membros mais velhos, como Elvira, tendiam a considerar a prece mais como uma prática codificada, com lugar e horário determinado, os membros mais jovens não operavam essa segmentação, tendo mais simpatia pela percepção da prece como um estado associado à intuição subjetiva do clima, categorizado pela oposição leve versus pesado. Na verdade, esses membros mais jovens conjugavam as duas visões, com uma clara preeminência atribuída à percepção da ubiqüidade da prece, englobando sem suprimir a concepção sustentada pelos mais antigos. Sua leitura enfatizava a vertente anti-ritualista do espiritismo, que inclusive sugeria a possibilidade de "ser espírita fora dos centros" e do próprio movimento espírita. Logo, o grupo registrava variações internas que não eram apenas suas, mas dos espíritas em geral, entre a inevitável codificação da prece em rituais públicos e práticas privadas, de um lado, e sua assimilação difusa a um estado constante e indiferenciado, de outro.

A discussão oral sobre a prece levantou um outro ponto, dificilmente sistematizado na literatura doutrinária. Trata-se de uma oposição entre uma dimensão ética e outra mágica nas práticas de oração. A dimensão ética corresponde a uma espécie de imperativo categórico da prática religiosa espírita: há um dever incondicional de dirigir-se e submeter-se ao plano espiritual superior, sem esperar privilégios ou calcular conseqüências. Na prece realiza-se uma concepção de diminuição da individualidade do médium como condição para a conexão reverente com as forças do alto. No entanto, as representações sobre a eficácia da prece apontam quase sempre para técnicas corporais: qual a atitude mental adequada, como a respiração deve ser conduzida, se há necessidade ou não da voz, etc. Esta fusão das dimensões expressivas e técnicas introduz a dimensão mágica na reflexão dos informantes, ainda que nem sempre explicitamente nomeada. Sendo o contato e a influência dos espíritos um dado permanente em sua visão de mundo e noção de pessoa, a prece necessariamente levará em conta a percepção de uma conjuntura relacional de contatos espirituais para o médium, mas os cursos de ação poderão dirigir-se ora a uma aceitação evangelizadora de todos esses contatos, ora ao emprego técnico ("mágico" num sentido etic) da oração para afastar essas influências. Nesse sentido, a narrativa de Elvira sobre a enfermidade causada pela diminuição do volume das preces é exemplar dessa dimensão mágica, bem como das ambigüidades da concepção de prece para os espíritas.

Por fim, o complexo da prece pode ser aproximado de uma lógica situacional que enfatiza aspectos diferenciados no molde abrangente e flexível de seu sistema de crenças, que faz com que ambas as dimensões, ética e mágica, possam estar presentes para a mesma pessoa, num mesmo momento. Isso permite que as preces sejam conduzidas em forma de diálogo, mais próxima da visão de autenticidade ou do coração, construção simbólica na qual ecoa a tensão teológica espírita entre pensamento (nível elevado, estado interior) e linguagem (nível baixo, formalização exterior).

Além da prece, a palestra doutrinária é um outro domínio de exercício de técnicas retóricas e corporais em que predominava a máxima, espécie de fórmula de múltiplo uso. Trata-se, no entanto, de uma estrutura formular diferente daquela empregada para a improvisação de preces. Enquanto esta se pautava pela improvisação em torno de um tema, seguindo uma determinada estrutura rítmica e semântica, aqui a fórmula torna-se máxima doutrinária. Não é simples descrever a força ilocucionária das máximas na retórica espírita. Elas são uma espécie de ensinamento condensado, que permite a fixação mnemotécnica da doutrina num corpus de frases curtas — por exemplo "viemos ao mundo para ser testados" ou "orai e vigiai", etc. — cumprindo um papel didático, como num sermão. Pode-se ter uma apreensão doutrinária em diversos níveis de aprofundamento, mas o conhecimento dessas máximas e suas explicações constituem o repertório mínimo que o espírita incorpora em sua trajetória religiosa. Além disso, a máxima funciona como um sinalizador verbal, que permite o trânsito de planos discursivos do particular para o geral e vice-versa, do texto ao comentário e deste ao exemplo, à narrativa. No grupo de estudos elas estão em muitas introduções de falas, como as que sublinhamos acima. Mas em palestras doutrinárias elas podem servir de operadores discursivos, preencher brancos na fala e também servir à guisa de conclusão. Toda a socialização no espiritismo é permeada pelo uso de máximas nas falas, como por exemplo

Viemos ao mundo para ser testados
O nosso mundo é uma cópia pobre do mundo espiritual
É pelo sofrimento que se chega à doutrina espírita.

O uso de máximas doutrinárias permitia que cada trecho lido em grupo pudesse ser associado a diversos tipos de atos discursivos, do comentário específico aos depoimentos pessoais, envolvendo intercâmbios mediúnicos, vidas passadas, méritos e faltas, exemplos de "espíritos missionários", etc. Essas operações serviam para costurar os fragmentos discursivos em pequenas totalidades, que condensavam em clichês os princípios fundamentais da doutrina espírita.

A flexão das sentenças no chamado "plural majestático" — a primeira pessoa do plural — também era um dado lingüístico comum ao grupo de estudos e à palestra, juntamente com saudações fraternas, que constituíam as formas verbais próprias a essas situações, no interior de um modus operandi que tomava a expressão escrita como modelo para a fala. Seguindo esse esquema, o palestrante teria a capacidade de discorrer por horas a fio a partir de trechos de livros escolhidos ao acaso. Mas também poderia concluir a qualquer momento, o que nos introduz na segunda característica da inculcação de um habitus oratório no grupo de estudos: o enquadramento da fala ao tempo disponível, ou seja, a formação de um timing discursivo.

A adaptação da fala ao tempo disponível é uma habilidade das mais valorizadas no espiritismo kardecista. Se observarmos uma palestra doutrinária seguida de passe, veremos que os palestrantes sempre conseguem manter-se no tempo disponível, dificilmente passarão o limite de horário ou terminarão muito antes do previsto. A rígida observância de horários obriga os falantes a construir uma estratégia de adaptação ao tempo disponível que é aprendida nos grupos de estudo e tem por base os recursos retóricos aprendidos nos grupos de estudos. Uma palestra planejada lançará mão de um repertório de ensinamentos e máximas, onde o falante usa uma generalização, sinalizando um bloco da palestra, costurando-o à outra, e, ao aproximar-se do final da palestra, terminará recapitulando os pontos principais já enunciados no início da fala. Se é um comentário escolhido "ao acaso",9 funcionará a fórmula do improviso, em que máximas e generalizações vão sendo continuamente costuradas e dissertadas no decorrer do tempo, alimentando um fluxo de discurso constituído não apenas da estrutura tradicional de um "começo-meio-e-fim", mas de vários pequenos "começos-meios-e-fins" em que as fórmulas verbais fazem o papel de partículas aditivas entre os segmentos da fala.

Ao aproximar-se do final do tempo, o expositor relacionará a última conclusão enunciada com o tema principal. Assim, é a estrutura formular oral da retórica espírita, tanto no plano das máximas quanto nas pequenas generalizações discursivas seqüencialmente encadeadas das palestras, que permite que um improviso — lido na ótica nativa através da categoria inspiração10 — obtenha êxito, mantendo-se sempre no tempo disponível.

A eficácia simbólica das palestras espíritas deve-se, em grande parte, à sua legibilidade descontínua, ou seja, à capacidade dos enunciados das máximas sempre se encaixarem no tema geral escolhido ao acaso, mas também às múltiplas chances de uma audiência heterogênea identificar-se e construir um sentido geral com pequenos segmentos da palestra, sem a necessidade de tê-la compreendida por inteiro. Pequenos discursos descontínuos são costurados por um ritmo oratório e semântico contínuo, que permite que aparentes incoerências e ambigüidades no fluxo do discurso sejam percebidas pela audiência como dotadas de uma continuidade semântica maior.11

Isso não significa que todas as palestras reduzam-se a essa descrição, nem que isso forme um modelo exclusivo do espiritismo ou mesmo que possa ser generalizado a todo o universo dos que se reclamam espíritas. Talvez os momentos mais característicos de palestras com esse teor formular sejam os daquelas mais dirigidas a converter simpatizantes do que propriamente falar para adeptos, sobretudo quanto a fala do orador é acompanhada por um fundo musical.



Conclusão


A leitura em comum, seja em voz alta, seja silenciosa, era concebida como uma atividade de múltiplos fins, sempre sujeita à relação com outras inserções do fiel nos diversos espaços e atividades das casas espíritas. O fiel que estuda também dá passes, faz sessões de atendimento fraterno, desenvolvimento mediúnico, doutrina os espíritos na desobsessão, atividades que suscitam questões a serem discutidas no grupo de estudos, a instância interna de elaboração doutrinária mais reflexiva e dialogada do centro espírita. Englobada pelos imperativos de formação prática e ritual do espírita, é compreensível que a exegese no grupo de estudos seguisse uma coerência sutil entre fragmentos lidos em comum e um conjunto doutrinário pressuposto, de forma bem diferente da leitura do lector, valorizada nos quadros universitários (Bourdieu, 1991). Nunca mera aquisição de conhecimentos, o estudo não funciona bem, na visão espírita, se não estiver amparado por uma "inspiração espiritual", uma conexão bem estabelecida e equilibrada com as forças espirituais supostas como presentes a qualquer situação humana. É essa "inspiração espiritual", somada às relações formais e informais de autoridade entre os diversos participantes, que garante a coerência e a reprodução de um sentido ortodoxo a qualquer rumo que um debate possa tomar no grupo de estudos.

Isso nos remete à valorização simultânea da dependência e do livre-arbítrio no espiritismo — para retomarmos os termos da discussão de Cavalcanti (1983) —, em que o intelecto recebe uma valorização ambígua e condicional. Sede simbólica do conhecimento e das decisões individuais, ela está englobada pelo imperativo maior de progresso moral, com a conseqüente introdução de um antiintelectualismo num sistema que tanto valoriza o estudo e o conhecimento.

A leitura e a conversa, no grupo de estudos, salientavam, além da reprodução da "leitura correta", um disciplinamento pela forma que buscava a criação de uma competência retórica, de um habitus lingüístico de orador espírita. Nesse habitus, a conjugação verbal de um discurso descontínuo com um ritmo oratório contínuo, fundamental nas palestras de trechos lidos ao acaso, baseava-se na crença na subordinação do orador a um plano espiritual que inspira suas palavras, e que era indissociável do valor das diferentes práticas de leitura levadas a cabo no grupo de estudos. A leitura espírita remetia também à sedimentação doutrinária operada em sua literatura complementar, que realiza um incessante exercício de comentário e reiteração de seus textos sagrados. Além de remeterem uns aos outros, muitos textos de divulgação espíritas têm uma característica de redundância, funcionam sempre como chaves para a totalidade, resumem, sintetizam e recapitulam os pontos principais do sistema. Numa tradição iniciada pelo próprio Allan Kardec, eles podem ser lidos em diversos níveis de aprofundamento, com propósitos claramente didáticos, desde o manual de iniciação do leigo até o texto mais especializado e especulativo, destinado aos iniciados. A condensação, junto com a inserção do espiritismo na tradição cristã através das genealogias espirituais, fundamenta a sua eficácia simbólica através da uma elasticidade semântica de seu discurso, sempre adaptável às finalidades pragmáticas do auditório. Essa elasticidade semântica do discurso espírita permite, desde a retomada da inspiração bíblica do Novo Testamento, onde os espíritas podem resumir todo o sentido de sua doutrina na citação "ama a teu próximo como a ti mesmo", até discursos altamente especializados, destinados a um público restrito.

A fala e o estudo no grupo de estudos eram essencialmente uma fala e um estudo de convertidos, simultaneamente "ontológica" e "dialógica", para adaptarmos a distinção que Jonathan Boyarin (1993) faz entre o Novo e o Antigo Testamento. Estudava-se e discutia-se não para aceitar ou refutar a doutrina, mas para poder prosseguir o trabalho de iniciação pessoal, participação nas atividades de trabalho do centro espírita e realizar proselitismo.



Referências

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Recebido em 10/05/2004
Aprovado em 01/06/2004





1 O espiritismo kardecista delimita-se pela referência às obras de Kardec, basicamente O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, A Gênese e O Céu e o Inferno, apelidados de o "pentateuco kardequiano" (Kardec, 1982, 1984, 1991a, 1991b, 1997). A denominação "obras básicas" abrange os três primeiros títulos do conjunto, mas por serem consideradas pelos espíritas como formando a base essencial da Codificação, esta formada pelo conjunto da obra de Kardec. O Livro dos Espíritos é a referência básica de leitura para os grupos de estudos, em conjunto com cartilhas didáticas preparadas pela Federação Espírita Brasileira (FEB).
2 Essa idéia foi enunciada por Maria Laura Cavalcanti (1983).
3 As hierarquias de posição na escala evolutiva nunca são objeto de discussão explícita entre os espíritas. Não há uma conversa ou estabelecimento de um ranking evolutivo. Os espíritas são treinados, no entanto, a identificar tendências ao conflito ou atitudes reprovadas como sinais de baixa evolução espiritual.
4 "Quando o médium está concentrado, exteriorizando fluidos naturalmente, qualquer choque que venha afetar o seu sistema nervoso não só o desconcentra como pode ser nocivo à sua saúde. Os que são despertados com violências poderão sofrer acidentes graves pelo choque vibratório e chegar mesmo a desencarnar, em virtude da inibição das forças magnéticas que mantêm o tônus vital orgânico. Quando isso não aconteça poderá sofrer, entretanto, queda de pressão sangüínea; outras desordens aparecerão, pondo o médium em desequilíbrio, ainda que seja por alguns dias." (Toledo, 1993, p. 157).
5 Na cartilha didática, havia textos doutrinários, trechos de livros de Kardec, Emmanuel, André Luiz ou de algum intelectual espírita da FEB. Em cada unidade havia também questões e exercícios propostos, ao modo dos livros didáticos escolares.
6 Desenvolvi alhures (Lewgoy, 2000) a tese de que, condenando formalmente os dogmas e os rituais, o kardecismo ritualiza por outras vias, seja considerando a vida como uma prova, seja considerando o mundo como uma espécie de "escola". Também no centro espírita não há diplomações, batismos de fogo ou provas explícitas para um principiante, a não ser quando assume tarefas específicas como trabalhador da casa, expositor ou médium. O que significa que as provas iniciáticas podem surgir a qualquer momento, de forma espontânea e incisiva.
7 Olson (1997) sustenta que a leitura alegórica e espiritual da Bíblia — aquela que procura um sentido espiritual nas entrelinhas — predominou até a Reforma Protestante, quando surge o impulso que levou à crítica textual, especialmente ligada à separação do texto de suas interpretações.
8 A posição subordinada e instrumental do corpo e da linguagem em relação ao espírito e ao pensamento, no espiritismo, não significa desleixo com os veículos, mas todo um conjunto de preceitos e cuidados: no corpo as interdições de vícios e excessos, na fala um treinamento retórico constante. Retorna aqui a idéia de uma oposição hierárquica, e não equiestatutária entre matéria e espírito. Essa relação permite que se compreenda que, ainda que o mundo espiritual seja modelo e valor para o mundo visível, certas categorias de habitantes do mundo espiritual estão mais próximas da matéria que habitantes do mundo material — de onde uma oposição entre uma espiritualidade superior e uma espiritualidade "inferior".
9 Em verdade, "acaso" não é bem o termo correto. Geralmente o palestrante diz: "Aqui, no Evangelho, nos veio a seguinte passagem…"
10 Perguntando a palestrantes como procediam para fazer uma palestra com trechos escolhidos ao acaso, muitos me falavam que se sentiam transformados quando começavam a falar, explicando que isso só poderia ser uma inspiração do mundo espiritual.
11 Estou aqui desenvolvendo uma idéia de Northrop Frye (1986), aplicada a um outro contexto: a cultura oral caracteriza-se pela conjunção entre a versificação contínua e a prosa descontínua, enquanto que a na cultura escrita verifica-se o inverso.