quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

SÉRIE PARA PENSAR

Revista de Saúde Pública
Rev. Saúde Pública v.41 n.5 São Paulo out. 2007



Vulnerabilidade e vida nua: bioética e biopolítica na atualidade


Márcia AránI; Carlos Augusto Peixoto JúniorII

Instituto de Medicina Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
IIPrograma de Pós-graduação em Psicologia Clínica. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, Brasil

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RESUMO
O trabalho teve por objetivo analisar a noção de vulnerabilidade utilizada pela bioética para debater as pesquisas com seres humanos na atualidade, a partir de uma reflexão acerca da biopolítica na cultura contemporânea. Para isto, partiu-se da leitura de Giorgio Agamben dos modelos de poder foucaultianos – Soberania e Biopolítica – para, em seguida, analisar a noção de vida nua – "vida sem nenhum valor". Se os dispositivos de poder nas democracias modernas conjugam estratégias biopolíticas com a emergência da força do poder soberano que transforma a vida em vida nua, é fato que a bioética deve ser um instrumento de proteção das pessoas vulneradas. No entanto, além do território do estado do direito, a bioética também deve poder penetrar nas zonas de indiferenciação, onde soberania e técnica se misturam, profanando a fronteiras biopolíticas e problematizando a própria condição de vulnerabilidade.

Descritores: Bioética. Vulnerabilidade. Vulnerabilidade em saúde. Valor da vida. Política de pesquisa em saúde. Ética em pesquisa. Experimentação humana, ética.


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INTRODUÇÃO

Desde meados do século XVI, as ciências – notadamente as físico-matemáticas com Galileu e Newton, mas também a biologia e a anatomia a partir de André Vesalius – abandonaram uma atitude mais passiva ou contemplativa diante da natureza, fundada numa perspectiva prioritariamente metafísica. Na aurora da modernidade elas adotaram uma postura mais ativa na qual o método experimental, com suas exigências de observação e verificação de hipóteses desempenhou um papel fundamental. A ciência moderna rompe com a separação entre episteme (saber teórico) e téchnne (saber aplicado), integrando o discurso científico à técnica. Isso que fez com que problemas práticos no âmbito técnico levassem a desenvolvimentos científicos, bem como com que hipóteses teóricas fossem testadas na prática a partir de sua aplicação técnica. Nessas condições, o desenvolvimento do método experimental implicava necessariamente na transformação de objetos de investigação em sujeitos experimentais. Ocorre que, das cobaias animais inicialmente empregadas nos experimentos, chegamos à utilização de seres humanos como sujeitos das experiências. Apesar dos possíveis avanços que essa atitude possa ter proporcionado no domínio cientifico, não há como deixar de questionar o estatuto da vida humana nesses procedimentos.

No campo da política, foram muitas as transformações a partir das quais as ciências passaram a desempenhar um papel determinante. De uma anatomo-política calcada na disciplina dos corpos e voltada para um aumento da produção industrializada, passou-se a uma biopolítica fundada no controle da vida, visando à produção de subjetividades mais afeitas ao modo de vida pós-industrial. Para essa vida, não interessa mais "fazer viver ou morrer", mas, fundamentalmente, "fazer sobreviver", produzindo o que Giorgio Agamben1 chamou de "vida nua". Antes de discutir mais atentamente essas questões, ressalta-se que isso não quer dizer que todos os trabalhadores das classes populares na vida contemporânea tenham sido atingidos de forma indiscriminada pelas estratégias do biopoder. Para detalhar a diversidade de ação dos seus mecanismos, seria necessário considerar longamente as inúmeras diferenças sociopolíticas, econômicas e culturais entre as diferentes populações, o que não é o objetivo do presente artigo. Na passagem do poder ao biopoder, as questões éticas embutidas nas práticas científicas acabaram por se tornar cada vez mais prementes. Por exemplo: como fundamentar uma bioética que, além de proteger os seres humanos de uma pura e simples utilização instrumental perversa, possa problematizar o estatuto da vulnerabilidade de algumas vidas? Qual o estatuto da vida diante da soberania exercida pelo biopoder? Ou ainda, nas fronteiras biopolíticas da atualidade, existiriam vidas mais dignas que desfrutariam dos avanços da ciência e vidas consideradas de menor valor as quais serviriam principalmente de cobaias para os experimentos científicos? Estas são apenas algumas das indagações que não podem ficar sem resposta ou que, no mínimo, exigem um questionamento mais atento e rigoroso.



QUESTÃO DA VULNERABILIDADE/VULNERAÇÃO

Ruth Macklin no artigo intitulado "Bioética, vulnerabilidade e proteção"20 formula a seguinte pergunta: "o que torna indivíduos, grupos ou países vulneráveis?". Segundo a definição das Diretrizes Éticas Internacionais de Pesquisa, revisada pelo Conselho para Organizações Internacionais de Ciências Médicas,1 "pessoas vulneráveis são pessoas relativa ou absolutamente incapazes de proteger seus próprios interesses. De modo mais formal, podem ter poder, inteligência, educação, recursos e forças insuficientes ou outros atributos necessários à proteção de seus interesses"20 (p. 60). Diante de tal definição, 20 a principal característica de vulnerabilidade expressa por esta diretriz seria "uma capacidade ou liberdade limitada", mostrando que os grupos específicos poderiam ser considerados vulneráveis:

"Incluem-se aí membros subordinados de grupos hierárquicos como militares ou estudantes; pessoas idosas com demência e residentes em asilos; pessoas que recebem benefícios da seguridade ou assistência social; outras pessoas pobres desempregadas; pacientes em salas de emergência; alguns grupos étnicos e raciais minoritários; sem-teto, nômades, refugiados ou pessoas deslocadas; prisioneiros; e membros de comunidade sem conhecimento dos conceitos médicos modernos" (grifos nossos) (p. 61).

Integrando uma tendência crítica ao debate sobre ética em pesquisa com seres humanos, Macklin pretende fazer da bioética um instrumento político que garanta a proteção, e como conseqüência, a não-exploração de indivíduos vulneráveis. Seus artigos e textos registram situações específicas que fazem refletir sobre esta problemática.

Porém, com o intuito de discutir melhor a questão formulada acima, observa-se que sua definição de vulnerabilidade diz respeito tanto a um grupo de pessoas momentaneamente incapazes de exercer sua liberdade por uma contingência física, ou por conseqüências "naturais" do percurso da vida, quanto a um outro grupo que também se mostra incapaz, mas por conseqüências "sociais" e "políticas". Desta forma, retomando a definição do Conselho Internacional de Ciências Médicas, percebe-se que o que caracteriza, em parte, esse segundo grupo, é uma indefinição do estatuto de sua cidadania.

Considerando ainda outros problemas presentes nessa definição, alguns autores propõem distinguir o conceito de vulnerabilidade do conceito de suscetibilidade ou vulneração19,23 Kottow19 argumenta que a vulnerabilidade seria um atributo antropológico de todo ser humano, pelo simples fato de estar vivo, enquanto que a suscetibilidade seria um dano instalado em grupos sociais ou em indivíduos. Da mesma forma, Schramm2 propõe que se embora potencialmente ou virtualmente vulneráveis, nem todas as pessoas são vulneradas concretamente. Nesse sentido, seria imprescindível para a bioética contemporânea distinguir "a mera vulnerabilidade da efetiva vulneração". Esse deslocamento permite repensar a idéia de igualdade e de justiça no mundo globalizado, já que admite uma situação de assimetria. Nesse sentido, indivíduos e populações são momentaneamente excluídos do estado de direito, vivendo numa zona de indeterminação, onde sua liberdade é subtraída e sua vida perde o valor.

Desta forma, o debate sobre vulnerabilidade, suscetibilidade e vulneração torna-se o centro nevrálgico da reflexão bioética contemporânea, o qual, no entanto, só poderá ser elucidado a partir de uma contextualização biopolítica. Com esse objetivo, passa-se à discussão sobre a biopolítica contemporânea para, em seguida dimensionar melhor o seu alcance efetivo sobre o tema da bioética.



BIOPOLÍTICA EM FOUCAULT E AGAMBEN

Michel Foucault situa a biopolítica no quadro de uma estratégia mais ampla por ele denomina de biopoder. Sua tese fundamental supõe que, no regime da soberania, o súdito deve sua vida e sua morte à vontade do soberano: "é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida",14 (p. 287). Nestas condições o poder é um mecanismo de retirada e de extorsão, ou seja, um poder negativo sobre a vida. Diferentemente, na época clássica, o poder deixou de basear-se predominantemente na retirada e na apropriação, para funcionar na base da incitação e da vigilância. Ele começou a produzir, intensificar e ordenar forças mais do que limitá-las ou destruí-las. Esse é o ponto no qual se pode situar a clássica passagem do poder ao biopoder tal como proposta por Foucault: "de fazer morrer e deixar viver [soberania]" o poder passa "a fazer viver e deixar morrer [biopoder/biopolítica]" (Foucault,15 p.181).

Este "fazer viver" que caracteriza o biopoder se baseia em duas tecnologias específicas. A primeira, delas, criada nos séculos XVII e XVIII, consiste em técnicas essencialmente centradas no corpo individual, caracterizada por procedimentos que asseguram a sua distribuição espacial e a organização de sua visibilidade (técnicas de racionalização e de economia destinadas a aumentar sua força útil). O conjunto dessas técnicas compunha uma determinada disciplina. No decorrer do século XVIII, surgiu outra tecnologia de poder que não exclui a primeira mas que, além de integrar o corpo, se dirige essencialmente à gestão da vida (nascimentos, mortalidade, saúde e longevidade). Assim, de uma anatomo-política do corpo passou-se a uma biopolítica da vida.

De acordo com Giorgio Agamben,3 a partir desta hipótese, Foucault insere a biopolítica numa relação problemática entre vida e história, ou vida e política.

"... O que se poderia chamar de 'limiar de modernidade biológica' de uma sociedade se situa no momento em que a espécie entra como algo em jogo em suas próprias estratégias políticas. O Homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão" (Foucault,15 p.134).

Mas em que consistiria, mais especificamente, essa apreensão da vida pela política ou essa total politização da vida?

Ao trabalhar a questão do poder, Foucault não privilegia a abordagem jurídica institucional, mas procura analisar a forma com que o poder penetra nos corpos e produz subjetividades. Por esse motivo, suas investigações voltam-se fundamentalmente para as técnicas políticas e as tecnologias do "eu". Porém, mesmo privilegiando o que se convencionou chamar de micro-política, Foucault afirma que o estado ocidental moderno integrou numa proporção sem precedentes técnicas de individuação subjetivas e procedimentos de totalização objetivos. Ele refere-se a um "duplo vínculo constituído pela individuação e pela simultânea totalização das estruturas do poder"15 (p. 229-232).

No entanto, ainda de acordo com Agamben,3 o ponto no qual esses dois aspectos do poder convergem não teria sido esclarecido pelo pensamento foucaultiano, permanecendo como um "ponto oculto" ou "uma zona de indeterminação". Nesses termos, qualquer aproximação exigiria uma sobreposição das duas formas de poder descritas acima, uma bricolagem, entre o modelo da soberania e o modelo da biopolítica.

Retomando a distinção grega entre zoé, o simples fato de viver – comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) – e bios (a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo), Agamben destaca que Platão e Aristóteles, teorizando sobre a vida, não empregam o termo zoé. Isso porque que não se tratava de questionar a simples vida natural, mas apenas a vida qualificada, ou seja, um modo particular de vida. A polis não integrava a vida natural, a qual permanecia como mera vida reprodutiva no âmbito do ôikos (casa). O autor se refere então a uma passagem de Aristóteles na Política, considerada fundamental para a tradição política do ocidente. Nela, o filósofo define a "meta da comunidade perfeita" opondo o simples fato de viver à vida politicamente qualificada, "nascida em vista do viver, mas existente essencialmente em vista do viver bem" 3(p. 11). Considerando essa oposição aristotélica pode-se afirmar que, na antiguidade, a zoé não teria sido capturada pelos dispositivos da política. Como visto anteriormente, baseado nesta definição, Foucault mostrou como, nos limiares da Idade Moderna, a vida natural começa a ser incluída nos mecanismos do poder estatal, e a política se transforma em biopolítica (idem).

Por outro lado, Agamben3 se refere ao fato de que Hannah Arendt,6 já no final dos anos 50, havia analisado, em A Condição Humana, o processo que leva a vida do homem trabalhador a ocupar o centro do poder político na modernidade. Esse primado da vida natural sobre a ação política justificaria, para a autora, a transformação e a decadência do espaço público, fazendo com que as democracias no ocidente se transformassem facilmente em regimes totalitários. A partir dessas hipóteses, Agamben afirma que "o ingresso da zoé na esfera da polis, a politização da vida nua como tal, constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico"3 (p. 12). Somente uma reflexão que interrogue a relação entre vida nua e política permitiria compreender a produção dessas zonas de indeterminação que integram o cenário da modernidade. Esse raciocínio faz com que esse estudo3 se atenha aos estados totalitários no século XX, onde um corpo biopolítico se constitui como a contribuição original do poder soberano.



ESTADOS DE EXCEÇÃO E VIDA PRECÁRIA

Para Agamben, o estado de exceção é o dispositivo pelo qual o direito integra a vida. A principal referência para este fenômeno paradoxal é a possibilidade de instauração por parte do totalitarismo moderno de uma "guerra civil legal",5 que encontra no Estado nazista o seu maior exemplo. Sabe-se que Hitler, por meio do "Decreto para a proteção do povo e do Estado", promulgado em fevereiro de 1933, suspendeu os artigos da constituição de Weimar, permitindo a eliminação da vida não apenas dos adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos. A partir daí, a criação de um estado de emergência permanente tornou-se uma das práticas políticas dos Estados "democráticos" contemporâneos (Agamben,2 p.13). Essa prática do estado de exceção tornou possível anular o estatuto jurídico do indivíduo, criando um ser juridicamente inominável.

Um dos melhores exemplos contemporâneos dessa situação é a "detenção indefinida" dos talibãs capturados no Afeganistão, promulgada por George Bush. Essas pessoas não são consideradas nem prisioneiras, nem acusadas: "detidas", elas são objeto de uma "pura soberania de fato" e subtraídas de qualquer possibilidade de exercício da cidadania. Adotando em parte as teses de Agamben, Judith Butler9 analisa a condição precária dos "detentos" na ilha de Guantánamo, mostrando que eles se encontram exatamente naquela "zona de indeterminação" referida anteriormente. Os "detidos" estariam submetidos apenas ao decreto promulgado pelo Ministério da Defesa do governo americano, de 21 de março de 2002, o qual, em nome de um alerta de segurança, suspende as leis nacional e internacional. "Terroristas em potencial", sem direito a qualquer julgamento, esses indivíduos permanecem em estado de eterna detenção.

Para maior aprofundamento do tema, Butler recorre ao mesmo argumento proposto por Agamben, segundo o qual – tendo como referência as teses de Foucault – soberania e biopolítica talvez não sejam regimes excludentes. Ao contrário, a biopolítica exercida pela governamentalidade permitiria a instauração burocrática da gestão da norma, e admitiria o exercício do poder soberano pelo estado de exceção. Considerando a suspensão da autoridade da lei, Butler mostra que "a perda relativa da soberania que resulta da predominância atual da governabilidade é compensada pelo ressurgimento da soberania no interior do campo da governabilidade" (Butler,9 p. 85).

Desde o Nazismo até Guantanamo, é possível acompanhar como a transformação dos regimes democráticos no Ocidente e a progressiva expansão dos poderes executivos possibilitaram o surgimento do estado de exceção como técnica de governo. Cada vez mais a proclamação do estado de exceção passou a estar prevista não somente como medida de segurança, mas como defesa da "democracia"2 (p. 32-33). No entanto, segundo Walter Benjamin,8 o problema do estado de exceção apresenta analogias evidentes com a questão do direito à resistência. Ele mostra que a resistência deveria se apropriar da exceção como instrumento de luta antifascista, subvertendo seus pressupostos jurídico-políticos. Nestas condições, levanta-se a hipótese de que uma profanação absoluta coincidiria com uma consagração integral:

"A tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção' no qual vivemos tornou-se doravante a regra. Devemos chegar a uma concepção da história que corresponda a essa situação. Então teremos diante dos olhos nossa tarefa que é a de fazer advir o estado de exceção efetivo; ela reforçará nossa posição na luta contra o fascismo" (Benjamin,8 1996: 226).

O que Benjamin parece deixar indicado nessa passagem é que uma das principais tarefas políticas da resistência seria a apropriação – por meio de uma espécie de profanação do improfanável (Agamben,4 2005) – das possibilidades de luta contra o fascismo, capturadas pelos dispositivos de poder instituídos pelo estado de exceção.

Inspirado nessa constatação benjaminiana, Agamben realiza uma exaustiva análise das tradições jurídicas, argumentando que existe um debate entre os que tentam incluir o estado de exceção no domínio do sistema jurídico e os que o consideram exterior a ele. Cabe lembrar que a relação entre exceção e soberania foi estabelecida, inicialmente, por Carl Schimitt em seu livro Teologia Política. Para Schimitt, soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção (Taubes,25 1999). Embora essa frase tenha sido amplamente comentada, Agamben afirma que falta uma teoria do estado de exceção no direito público. Agamben indaga se o propósito do estado de exceção é a suspensão do ordenamento jurídico, como este poderia ser compreendido na ordem legal? Ou ainda, ao contrário, se o estado de exceção é apenas uma situação de fato, estranha ou contrária à lei, como seria possível que o ordenamento jurídico apresentasse uma lacuna justamente nessa situação? (Agamben,4 p.39). Nesse caso, não se trata apenas de uma questão topológica – interior ou exterior ao ordenamento jurídico – mas de uma zona de indiferenciação, onde dentro e fora não se excluem posto que se indeterminam reciprocamente. O estado de exceção moderno seria, então, uma tentativa de incluir na ordem jurídica a própria exceção, criando uma zona de indistinção na qual fato e direito coincidem (p.43).

Nas teorias analisadas por Agamben há vários exemplos de sobreposição entre os atos do poder executivo e os do legislativo. Porém, o mais importante nesse debate é compreender a problemática aplicação da lei. Referindo-se à conferência realizada por Derrida11 "Força de Lei: o fundamento místico da autoridade", o que está em questão é a possibilidade de isolamento da "força de lei em relação à lei". O estado de exceção seria um "estado da lei", na qual a lei está em vigor, mas não tem força para ser aplicada. Nele, por outro lado, atos que não tem valor de lei adquirem a sua "força". Em tal caso, a "força da lei" flutua como um elemento de indeterminação jurídica: uma força de lei sem lei; um espaço de anomia no coração do direito.

Nesse sentido, a tese foucaultiana deveria ser complementada. Agora, não se trata apenas da inclusão da zoé na polis, ou seja, da inclusão total da vida nos dispositivos da política. Considerando que a exceção se torna cada vez mais à regra, a vida passa a coincidir exatamente com o espaço político, onde exclusão e inclusão, bios e zoé, direito e fato passam a habitar uma zona de inexorável indeterminação. É assim que a vida se torna vida nua.



PRODUÇÃO DE VIDA NUA NA MODERNIDADE

Tendo como referência a discussão sobre o estado de exceção no âmbito do direito e a conseqüente teorização sobre o limite da ação humana expressa no exercício da soberania, Agamben pretende compreender qual seria o estatuto da vida presa e abandonada à decisão soberana. Para isso o autor se apropria da noção de sagrado (sacer), a qual, fora dos domínios do direito penal e do sacrifício, estaria na origem da política: "soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera (Agamben,3 p. 91). A vida sacra ou vida nua seria, nestes termos, aquela que constitui "o conteúdo primeiro do poder soberano", exprimindo o caráter originário da sujeição da vida a um poder de morte. Nem bios nem zoe, a vida sacra torna-se assim uma zona de indistinção.

Ao compreender a política em termos de um contrato social e não de um bando soberano,3 o autor considera que a democracia moderna tornou-se incapaz de pensar uma política não-estatal. Diferentemente da representação moderna da política como direito do cidadão, liberdade e contrato social, no poder soberano o espaço político é fundamentalmente o espaço da vida nua. Assim, o que fora banido acabou separado da vida social, e é esta operação de exclusão inclusiva que integra biopolítica e geopolítica contemporâneas. (Agamben,3 p.116)

Procurando uma delimitação mais precisa para esse problema, Agamben elege o Campo de concentração como um dos paradigmas biopolíticos possíveis para a modernidade e o "muçulmano" – termo árabe que significa aquele que se submete sem reserva à vontade divina; na gíria do campo, "aquele que se entrega à morte" (Agamben,3 p.64) - como figura emblemática da vida nua. De acordo com o relato de Primo Lévi no livro Isso é um homem?, "muçulmano" foi o nome escolhido para designar um ser indefinido, uma experiência limite de supressão da dignidade humana nos campos de concentração. Nessa experiência, vida vegetativa e vida política se confundem, o que faz do "muçulmano" "a testemunha integral" da ética de Auschwitz (Agamben,1 p.57). A partir do testemunho do "muçulmano" o campo poderia ser considerado o exemplo incontestável de que o estado de exceção tornara-se a regra. Ele não é apenas o lugar de morte, mas, sobretudo, o palco de uma experimentação onde, para além da vida e da morte, o judeu se transforma em "muçulmano".

No espaço onde a tecnologia da morte foi materialmente realizada de forma "vulgar, burocrática e cotidiana", a morte e a sua fabricação tornam-se indiferentes: ambas se transformam num mero produto da sofisticação técnica. Mais uma vez, essa degradação da morte nos tempos atuais só pode ser compreendida por meio da sobreposição dos dois modelos de poder descritos por Foucault.14 A absolutização sem precedentes do biopoder se conjuga com a generalização do poder soberano e a biopolítica se confunde necessariamente com uma thanatopolítica. Diante disso, Agamben propõe uma terceira fórmula que apreenderia a especificidade da biopolítica do século XX: "não mais fazer morrer, nem fazer viver, mas fazer sobreviver (Agamben,1 p.108)". Nem vida, nem morte, mas apenas produção de sobrevida.

Com efeito, a cada separação entre não-humano e humano, configuram-se novas fronteiras entre "muçulmano e homem", "vida vegetativa e vida consciente", "cidadãos e refugiados", "vidas qualificadas e vidas sem qualquer valor". Nesse último caso, destaca-se a situação específica de alguns dos países em desenvolvimento nos quais a desqualificação de determinadas vidas salta aos olhos. Assim também se configura o isolamento de uma vida residual no continuum da vida, a qual sobrevive ao preço de sua degradação.



"VIDA SEM VALOR..."

Na história política moderna, vários são os exemplos dessas fronteiras biopolíticas. Agamben se refere, entre outros, à separação entre o humanitário e o político, à definição do conceito de morte, às zonas de espera dos aeroportos, bem como a certas periferias das cidades. Porém, para o presente trabalho, destaca-se a reflexão do filósofo sobre as pesquisas com seres humanos realizadas pela eugenética nazista, as quais deram origem à primeira declaração sobre ética em pesquisa, o Código de Nuremberg (1947).

O soberano, isto é, aquele que decide sobre o estado de exceção, decide também sobre a vida que pode ser morta sem que se cometa homicídio.3 Esta foi uma das políticas do Estado nacional-socialista alemão, a qual elevou ao extremo a possibilidade da metamorfose da vida, tornado-a matável e ao mesmo tempo insacrificável. Desta forma, o soberano decide sobre o ponto em que a vida pode se tornar politicamente irrelevante, e neste sentido, sem valor, ou seja, submetida apenas ao puro exercício da técnica. Nesse tipo de prática, política e medicina se misturam, radicalizando ao máximo, o princípio biopolítico da soberania. (Agamben,3 p.149-50). Nada mais chocante do que os registros dos prontuários dos Versuchepersonen (VP), as chamadas "cobaias humanas" nos campos de concentração. Esses seres, privados de todos os direitos e atributos que costumamos chamar de humanos, à espera de sua execução, existiam apenas como vida biológica, sujeitos aos mais diversos tipos de experimentos científicos. Um exemplo:

"Em 15 de maio de 1941, o doutor Roscher, que havia tempo conduzia pesquisa sobre salvamento a grandes alturas, escreveu a Himmler para perguntar-lhe se, dada a importância que os seus experimentos assumiam para a vida dos aviadores alemães e o risco mortal que comportavam para as VP (Versuchepersonen, cobaias humanas), e considerando, por outro lado, que os experimentos não poderiam ser conduzidos proveitosamente em animais, seria possível dispor de 'dois ou três delinqüentes de profissão' para o seu prosseguimento" (Agamben,3 p.161).

Considerando os termos da correspondência acima, parece que no horizonte biopolítico característico da modernidade, médicos e cientistas movem-se em uma espécie de terra de ninguém onde, antes, somente o soberano podia penetrar (Agamben,3 p. 16).

Apesar do progresso das democracias no ocidente, em nada comparáveis ao Estado nazista, o século XX é marcado por sucessivas denúncias de pesquisas com seres humanos que, pelo menos até o início da década de 70, ainda eram realizadas sem maiores compromissos éticos. Um dos exemplos mais freqüentemente mencionados é o Estudo Tuskegge sobre a sífilis, realizado no Alabama nos Estados Unidos, de 1932 até 1972.4 Nele, 400 homens negros contaminados pela doença permaneceram sem tratamento para que o curso natural da doença fosse observado, ainda que a cura pela penicilina tivesse sido descoberta desde o final da década de 20. Após 40 anos de experimentos com os participantes, ao término do projeto, somente 74 sobreviveram. Outro exemplo bastante comentado é o artigo "Ethics and Clinical Research", publicado por Henry Beecher7 em 1966. Nesse estudo, o autor selecionou 50 relatos de pesquisas eticamente questionáveis com seres humanos publicadas em revistas científicas, dos quais divulgou 22 exemplos com internos em hospitais de caridade, crianças, adultos com deficiência mental, presidiários e recém-nascidos. Essas pessoas não foram informadas ou esclarecidas o suficiente sobre o objetivo e a própria realização da pesquisa, tornando-se meros objetos experimentais (Diniz & Corrêa, 13 2001).

Nesse debate, surgiu a bioética como disciplina acadêmica e prática aplicada, constituindo-se não apenas em um instrumento de reflexão sobre os avanços da tecnologia e da biomedicina, mas numa proteção para os seres humanos envolvidos nas pesquisas.



EMERGÊNCIA DA BIOÉTICA

Vários autores situam o surgimento da bioética no início da década de 70 do século passado. Um dos marcos históricos mais significativos na genealogia da disciplina foi a publicação da obra "Bioética: uma ponte para o Futuro", de Van Rensselear Potter21 (1971). Porém, teria sido André Hellegers,13 na Universidade de Georgetown, o primeiro a institucionalizar o termo com o objetivo de designar uma nova área de atuação, a qual deu origem à chamada escola principalista (Diniz & Guilhem,12 p.11). Nesta escola, a reflexão bioética foi sistematizada a partir da elaboração de quatro princípios: 1) a autonomia, que parte do pressuposto de que para o exercício da liberdade é necessário que o indivíduo seja autônomo, ou seja, que no exercício da biomedicina, todos os participantes devem consentir de forma esclarecida e voluntária na sua participação tanto em projetos terapêuticos como em pesquisas a serem realizadas; 2) a beneficência, pressupondo que todo ato médico tem como objetivo fazer o bem; 3) a não-maleficência, baseada no princípio deontológico de que se deve evitar ao máximo a possibilidade de causar danos; 4) e a justiça (Childress & Beauchamp10).

Esses princípios éticos estão fundados na discussão moral proveniente da interação entre indivíduos, tendo como pressuposto básico tanto a igualdade cívica dos cidadãos, como a política de reciprocidade do contrato social. A ênfase na autonomia individual – influência direta da ética anglo-saxônica – estabelece como prioridade a reflexão sobre as relações médico-paciente ou pesquisadores-pesquisados, permanecendo muito aquém das discussões relacionadas ao campo da saúde pública e da desigualdade social.

No entanto, a partir dos anos 1990, surgiram novas teorias que passaram a problematizar a hegemonia da teoria principalista. Com efeito, a globalização econômica, os problemas de exclusão social vividos nos paises periféricos, a inacessibilidade de grupos vulneráveis ao desenvolvimento científico-tecnológico e a desigualdade de acesso das pessoas pobres aos bens de consumo indispensáveis à sobrevivência, passaram a fazer parte da reflexão dos pesquisadores engajados em uma bioética transformadora (Garrafa,16 p.34). Nesse sentido, uma ética baseada em princípios universais não pode ser aplicada, ou simplesmente incorporada num contexto de desigualdade. É importante desenvolver também uma reflexão que permita abarcar a complexidade das sociedades de Terceiro Mundo (Kottow18).

Assim, segundo Schramm,22 mesmo que se considere que a bioética contemporânea esteja atravessada por uma tensão produzida por dois paradigmas distintos, é fundamental compreender o contexto biopolítico da atualidade, sob pena de não atingir a rede de complexidade constituída pelos desafios da biotecnociência. Esses paradigmas são: o paradigma ético da "sacralidade da vida", fortemente influenciado pela doutrina religiosa baseada na inviolabilidade da vida humana, e o paradigma ético da "qualidade de vida", característico da bioética secular e laica. Definindo esse conceito como um conjunto interdisciplinar integrado de teorias, habilidades tecnocientíficas e aplicações industriais (biotecnologias), o autor mostra que:

"... no debate entre "bioética da sacralidade" da vida e "bioética da qualidade de vida" existe um aspecto, detectado tanto nos escritos de Foucault, quanto nos de Agamben e Derrida..., sobre o qual pouco se tem pensado. [Ele] diz respeito à condição humana vivida e sofrida, solicitando-nos a pensar a vida, antes da sua adjetivação em termos de "sacralidade" ou de "qualidade", em seus aspectos de "fragilidade", "desamparo", "nudez" e "mortalidade" (Schramm,22 p.21).

Avanços foram conquistados nas últimas décadas, principalmente com o consenso em torno da Declaração de Helsinki. Ela representou a consolidação dos preceitos éticos já instituídos pelo Código de Nuremberg, transformando-se na maior referência para a regulamentação da ética em pesquisa para a comunidade médico-científica de vários países. Apesar disso, um dos principais debates realizados nos fóruns de bioética da atualidade recai exatamente sobre o tema da desvalorização da vida daqueles que, por se encontrarem em situação de extrema vulneração sociocultural, acabaram instrumentalizados como meros objetos de pesquisa experimental. O que remete, mais uma vez, a este cenário da modernidade, onde o poder soberano exercido pela técnica transforma a vida em vida nua.



DEBATE ATUAL SOBRE A PESQUISA COM SERES HUMANOS

Muitos já se pronunciaram sobre a proposta de modificação da Declaração de Helsinki, sugerida pela Associação Médica Mundial em 1999, no que diz respeito às questões suscitadas pelo debate sobre os padrões de tratamento e ensaios clínicos (Diniz & Corrêa,13 2001; Garrafa & Prado,16 2001). Essa discussão teve origem na análise dos estudos de terapia profilática voltada para a transmissão do HIV de mãe para filho, controladas por placebo, patrocinados por várias instituições internacionais e realizados em alguns paises "em desenvolvimento", principalmente africanos. Sabe-se muito bem que desde 1994 a zidovudina (AZT) já era utilizada para reduzir os riscos de transmissão do HIV de mãe para filho, um padrão de tratamento para esses casos. No entanto, naqueles experimentos foram realizados estudos testados contra placebo, o que fez com que pelo menos metade da população pesquisada permanecesse sem tratamento (Selgelid,24 2005). As primeiras críticas a essa pesquisa foram feitas por Lurie & Wolfe,5 pois estes procedimentos violavam um dos principais artigos da Declaração de Helsinki sobre pesquisa com seres humanos. De acordo com o referido artigo, "em um estudo médico, a cada paciente – incluindo aqueles de grupo-controle, se estes existirem – deve ser garantido o aceso ao melhor diagnóstico e método terapêutico comprovado".6 Esta resolução tem como objetivo garantir aos participantes da pesquisa o melhor tratamento médico disponível. Porém, mesmo diante dessas críticas, não houve, inicialmente, qualquer recuo por parte dos pesquisadores e financiadores deste tipo e pesquisa. Ao contrário, houve a formulação de uma proposta de modificação desta declaração, a qual coloca em risco os avanços até então alcançados. Com efeito, em 1999, a Associação Médica mundial propõe a modificação do artigo mencionado acima de acordo com a seguinte formulação:

"em qualquer protocolo de pesquisa biomédica, cada paciente, incluindo aqueles do grupo-controle, se algum existir, deve ser assegurado que não lhe será negado o acesso ao melhor diagnóstico e/ou método profilático ou terapêutico comprovado que de outra forma estaria disponível para ele (grifos nossos)"( Selgelid,24 2005: 117).

O que se pode depreender dessa nova versão é que o padrão local de tratamento (que no caso dos países africanos trata-se de nenhum tratamento) serviria como instrumento de controle eticamente aceitável. O que significa, em última instância, a transformação da vida dessas pessoas em meros objetos de pesquisa, manipuláveis para fins instrumentais. Por fim, mais recentemente, em 2000, tendo em conta a reação por parte da comunidade internacional, uma nova formulação recomenda que:

"...em qualquer estudo médico, cada paciente – incluindo aqueles incluídos no grupo controle, se existir – deve ter assegurado o diagnóstico profilático e o método terapêutico comprovadamente eficazes..."24 (p. 117)

Diante da ambigüidade desta última proposta, a Declaração de Helsinki deverá ser discutida mais uma vez, podendo inclusive ser novamente alterada (Greco,17 2003 p. 260).

Resumindo, essa rápida explanação permite chegar à seguinte conclusão: a proposição de um duplo standard de pesquisa, ou ainda, de uma dupla ética de pesquisa com seres humanos _ um para os países desenvolvidos e outro para países "em desenvolvimento". Isso novamente exige questionar a respeito de uma "valorização diferenciada" da vida das pessoas, que promove a instauração de fronteiras biopolíticas entre vidas "politicamente relevantes" e vidas de "menor valor".



POR UMA POLÍTICA DA VIDA

Conforme o exposto, se os dispositivos de poder nas democracias modernas conjugam estratégias biopolíticas com a emergência da força do poder soberano que transforma a vida em vida nua, é fato que a bioética deve ser um instrumento de proteção das pessoas vulneradas. Nestes termos, recuperando o significado da palavra grega "ethos" – a qual também tem o sentido de "amparo", "guarita" e "abrigo" –, Schramm & Kottow23 (2001) propõem uma bioética da proteção, a qual pretende ser mais do que uma ferramenta descritivo-normativa, tendo como objetivo mediar conflitos de interesses e valores, e ainda, "de maneira talvez mais profunda e primordial, constituir um amparo contra as ameaças à 'vida nua'" (Schramm,22 p.24).

Considera-se importante acentuar esse deslocamento, ou dobramento que, para além do território do estado do direito, faça com que a bioética também possa penetrar nessa lacuna, nessa terra-de-ninguém, nessa zona de indiferenciação, onde soberania e técnica se misturam, profanando essas fronteiras e problematizando a própria definição de vulnerabilidade/vulneração, a partir de uma biopolítica menor. A precariedade e uma certa insuficiência da vida precisam ser consideradas condições de alta relevância num modo de subjetivação singular, em vez de serem instrumentalizadas por um processo de produção de subjetividades que só visa a manutenção do "status quo" dominante do poder biopolítico.

Quem sabe se a bioética vier a se inserir nesta brecha, possa-se ainda devolver à vida o que lhe é imanente. Como mostrou Agamben:

"o corpo do homo sacer e a vida nua constituem a força e, ao mesmo tempo, a íntima contradição da democracia moderna: ela não faz abolir a vida sacra, mas a despedaça e dissemina em cada corpo individual, fazendo dela a aposta em jogo do conflito político. Corpus é um ser bifronte, portador tanto da sujeição ao poder soberano quanto das liberdades individuais (Agamben,3 p.130).



REFERÊNCIAS

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2. Aganben G. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo; 2004. [ Links ]

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4. Aganben G. Profanation. Paris: Bibliothéque Rivages; 2005. [ Links ]

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6. Arendt H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 1989. [ Links ]

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11. Derrida J. Force de loi. Paris: Galilée; 1994. [ Links ]

12. Diniz D, Guilhem D. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense; 2002. p.10-20. [ Links ]

13. Diniz D, Corrêa M. Declaração de Helsinki: relativismo e vulnerabilidade. Cad Saude Publica. 2001; 17(3):679-88. [ Links ]

14. Foucault M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2002. [ Links ]

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16. Garrafa V, Prado M. Mudanças na Declaração de Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social. Cad Saude Publica. 2001;17(6):1489-96. [ Links ]

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21. Potter VR. Bioethics: bridge to the future. New Jersey: Prentice-Hall; 1971. [ Links ]

22. Schramm FR. A moralidade da biotecnociência: a bioética da proteção pode dar conta do impacto real e potencial das biotecnologias sobre a vida e/ou a qualidade de vida das pessoas humanas? In: Schramm FR, Rego S, Braz M, Palácios M, organizadores. Bioética, riscos e proteção. Rio de Janeiro: UFRJ/ Fiocruz; 2005. p. 15-28. [ Links ]

23. Schramm FR, Kottow M. Principios bioéticos en salud pública: limitaciones y propuestas. Cad Saude Publica. 2001;17(4):949-56. [ Links ]

24. Selgelid M. Padrões de tratamento e ensaios clínicos. In: Diniz D, Gulhem D, Schuklenk U, organizadores. Ética na Pesquisa: experiência de treinamento em países sul-africanos. Brasília: Letras Livres; 2005. p. 105- 28. [ Links ]

25. Taubes J. La théoogie politique de Paul: Schmitt, Benjamín, Nietzsche et Freud. Paris: Seuil; 1999. [ Links ]





Correspondência | Correspondence:
Márcia Arán Instituto de Medicina Social – UERJ
R. São Francisco Xavier, 524 Pavilhão João Lyra Filho, 7º andar
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E-mail: marciaaran@terra.com.br


1 World Health Organization, Council for International Organizations of Medical Sciences. International ethical guidelines for biomedical research involving human subjects. Geneva; 2002. Disponível em: http://www.cioms.ch/frame_guidelines_nov_2002.htm [Acesso em 30 Jan 2006]
2 Schramm FR. A Saúde é um direito ou um dever? Considerações sobre vulnerabilidade, vulneração, proteção, biopolítica e hospitalidade. Texto mimeo, 10p.
3 Nas palavras do autor: "... in bando, a bandono significam originariamente em italiano 'à mercê de... ', e bandido significa tanto 'excluído, banido' quanto 'aberto a todos, livre'... O bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois pólos da exceção soberana; a vida nua e o poder, o homo sacer e o soberano" (Agamben,3 p.117).
4 Gostin, L, editor. Public health law and ethics. Los Angeles. University of California Press; 2002. In: Selgelid24 (2005).
5 Lurie P, Wolfe S. Unethical trials of interventions to reduce perinatal transmission of the human immunodeficency virus in developing countries. N Engl J Med. 1997;337(12):853-6. (apud Diniz & Corêa13)
6 Helsinki (1964, reformulada 1975,1983,1989,1996 e 2000), da Word Medical Association. (apud Selgelid24)


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terça-feira, 29 de janeiro de 2008

SÉRIE PARA PENSAR

Ambiente& sociedade
Ambiente e Sociedade. vol.10 no.1 Campinas Jan./June 2007

A urgência da desconstrução criativa*

Eder Jurandir Carneiro

Professor de Sociologia da Universidade Federal de São João del-Rei

Dizia Pierre Bourdieu que o maior perigo que correm os cientistas sociais é o da ilusão da compreensão imediata. Isto porque classificamos e interpretamos a realidade por meio de esquemas geradores de percepções e avaliações que, por sua vez, são gerados pela contínua experimentação do mundo a partir da posição social que ocupamos. Assim, somos constituídos por uma propensão a tomar o mundo como óbvio, a considerar a realidade que nos cerca como portadora, em si mesma, de um significado dado, unívoco, supostamente inscrito na própria objetividade dos "fatos". Esse mecanismo tem a função de manter os indivíduos engajados em visões de mundo e práticas sociais cujo sentido não se lhes afigura problemático.

Ensinava ainda Bourdieu, com Bachelard, que a ciência social só se inicia com uma ruptura desse mecanismo, porquanto a primeira tarefa do cientista seria a de tomar como objeto de explicação os processos sociais de construção dos objetos que o senso comum tem como dados. Esses objetos pré-construídos são, em geral, o resultado (e simultaneamente o ponto de partida) das lutas simbólicas em que atores, localizados em posições sociais assimétricas, empenham-se para impor ao mundo determinadas classificações e significados como socialmente válidos. De forma que, ao longo das disputas, certas ortodoxias (ou visões dominantes) logram converter-se em doxa, isto é, em pressupostos, postulados colocados aquém de qualquer questionamento.Pois bem: no campo da chamada "questão ambiental", determinadas concepções firmaram-se, ao longo dos últimos 20 anos, como hegemônicas, e converteram-se numa doxa que pretende circunscrever os limites do pensável e do praticável. E, sem dúvida, a legitimação dessa doxa reforça-se sobremaneira na medida em que as noções que a integram têm se apresentado sob uma roupagem "científica", que lhes confere uma espécie de atestado de racionalidade e neutralidade.

Nos últimos anos, contudo, delineia-se claramente um conjunto de esforços que, oriundos de distintas disciplinas das ciências sociais, têm como causa comum a desconstrução da doxa dos debates sobre a chamada "questão ambiental", tarefa que vai de par com a construção dessa questão como objeto epistêmico. Momento especialmente luminoso desse processo é representado pelo livro Cidade, ambiente e política: problematizando a Agenda 21 local, obra de seis mãos, realizada por Henri Acselrad, Cecília Mello e Gustavo Bezerra.

O propósito central dos autores, como o próprio título indica, é evidenciar o significado político das concepções e práticas que vertebram a proposta da Agenda 21 local, que constitui um dos instrumentos indicados para a promoção do "desenvolvimento sustentável", de acordo com os 170 países que, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada em 1992, no Rio de Janeiro, assinaram a Agenda 21 global. Cidade, ambiente e política: problematizando a Agenda 21 local divide-se em três capítulos.

No capítulo inaugural, Henri Acselrad apresenta, de forma sistemática, o enquadramento teórico-analítico que articula o livro em seu conjunto. A ruptura com o senso comum da "questão ambiental" se inicia quando o autor surpreende a Agenda 21 naquilo que ela tem de mais essencial, ou seja, a noção coisificada do "local". Acselrad demonstra que o "local" é, antes, uma construção, uma escala de análise cuja compreensão é indissociável dos processos de escala mais abrangente. Nessa chave, a Agenda 21 local é vista como um dos elementos constitutivos de um processo mais amplo de reconfiguração da esfera política, por sua vez vinculado às transformações mais recentes na "geografia da acumulação" (Harvey) da economia-mundo.

Resumindo a complexa argumentação de Acselrad, trata-se de que, em tempos de acumulação flexível, o elevado patamar de transnacionalização dos capitais debilita o poder regulatório do Estado sobre as condições gerais de reprodução ampliada do capital. Nesse contexto, agências financeiras internacionais, como o FMI e o BIRD, implementam uma "política de escalas" de duplo aspecto. De um lado, promovem o que o autor chama de "desgovernamentalização" relativa do Estado, dele retirando tarefas essenciais de administração da sociedade, mediante ações de desregulação e desmonte de instituições e normas de políticas públicas e de planejamento. Resta ao Estado, efetivamente, a condução das políticas e "reformas" propugnadas pelo FMI e BID, voltadas para a estabilidade monetária, a redução de gastos públicos e a formação de superávites primários para saldar serviços da dívida. De outro lado, dada a "desgovernamentalização", busca-se implementar, no âmbito "local", conceitos, estratégias e práticas de administração infra-estatal das "externalidades" do mercado e das demandas sociais. Assim, na esteira da denegação do Estado, os "atores da sociedade civil" são concitados a unir esforços, formar "parcerias", participar de conselhos etc., com vistas à consolidação de "boas práticas" de "governança" local.

A participação dos atores da "sociedade civil" tem como pressuposto (e não como um dos resultados possíveis) o consenso, já que os conflitos são vistos como evidência de falta de "capacitação", como "problemas" passíveis de resolução por meio da "conscientização" e da operação de tecnologias de formação de consenso. As "boas práticas" de "governança" local (entre elas aquelas preconizadas pela Agenda 21), supostamente substitutivas das políticas sociais do Estado, serviriam para criar um clima de estabilidade e segurança que incrementaria as possibilidades de êxito na competição interlocal, verdadeira "guerra" pela atração de capitais privados e pela captação de recursos de programas do governo federal.

Em síntese, a contraparte necessária da "desgovernamentalização" é uma espécie de "pós-democracia consensual" (Rancière), que, desconsiderando as desigualdades e clivagens estruturais, concebe indivíduos e entidades como "atores da sociedade civil" igualmente responsáveis pelos "problemas" e "soluções" a serem enfrentados na escala local, desconhecendo o fato de que as causas de tais "problemas" remetem a processos mais abrangentes, de âmbito nacional e mundial.

No segundo capítulo, Cecília Mello nos oferece um saboroso glossário em que apresenta e analisa, desnaturalizando-os, os vocábulos típicos do léxico da Agenda 21. Praticante da ciência social de boa cepa, a antropóloga considera o "efeito de teoria" (Bourdieu) exercido pelas di-visões de mundo que se impõem no curso das lutas simbólicas: as representações socialmente dominantes fazem-se desconhecer como tais na exata medida em que logram ser reconhecidas como expressão de uma verdade e/ou de uma justiça supostamente inscritas na objetividade do mundo; conseqüentemente, à maneira de uma profecia auto-cumprida, tais representações sustentam e orientam as ações dos agentes no sentido da (re)produção objetiva do mundo nelas figurado.

A análise deve esquivar-se de incorporar acriticamente a visão de mundo que o léxico da Agenda 21 cristaliza e veicula. Tampouco trata-se de considerar os vocábulos desse léxico como "falsos" e substituí-los por outros, supostamente mais "verdadeiros". A tarefa analítica a que se dedica a autora é a de, na boa tradição da crítica das ideologias, explicitar a funcionalidade do léxico em relação a projetos e interesses de determinados grupos sociais.

Mello nos apresenta, em ordem alfabética, uma lista de 21 vocábulos devidamente desconstruídos. Esse trabalho de reflexão crítica sobre o léxico em exame é conditio sine qua non para a construção de uma abordagem científica da chamada "questão ambiental", já que, nesse campo, a maioria dos trabalhos compra as noções socialmente hegemônicas pelo valor de face, utilizando-as sem muito rigor conceitual.

Em síntese, a autora nos mostra como o léxico da Agenda 21 carrega a visão de que a ação e a reflexão políticas profundas, que explicitam conflitos entre projetos de sociedade distintos, defendidos por grupos e classes localizados em posições sociais assimétricas, devem ceder lugar às "ações cidadãs" locais de mitigação das "externalidades" do mercado e de regulação da reprodução social. Tais ações devem ser empreendidas por "atores relevantes", que, devidamente "capacitados" para a participação responsável, formam "parcerias" e urdem "consensos", na suposição de que os "conflitos" (entre indivíduos, e não entre classes), admitidos como inerentes às sociedades complexas, constituem "problemas" discretos, que podem ser "solucionados" pela negociação e pelas tecnologias de formação de consenso. O objetivo dessas estratégias de "mobilização" é a "implicação" de "todos" (Estado, representantes do capital e atores da "sociedade civil") em processos de participação "responsável", com vistas à promoção do "desenvolvimento sustentável", isto é, a compatibilização entre o "crescimento econômico" e a preservação do meio ambiente (supostamente uno e unívoco).

Por fim, o terceiro e último capítulo, de autoria de Gustavo Bezerra, interpela tentativas empíricas de implementação da Agenda 21, realizadas no morro do Preventório (Niterói), em Angra dos Reis e na ilha de Paquetá (município do Rio de Janeiro). A expectativa dos promotores da Agenda 21 no estado do Rio era de que ela resultaria de um mosaico de Agendas 21 locais e representaria um "Novo Projeto Civilizatório", na medida em que se faria mediante parceria entre Estado, empresariado e "sociedade civil", que, assim, abandonariam o antigo modelo marcado por enfrentamentos e "construção do inimigo".

Bezerra demonstra que, na prática, as tentativas e implementação da Agenda 21 examinadas cingiram-se à constituição de dinâmicas discursivas, sem muito impacto sobre o planejamento, normatização e ordenação dos usos efetivos dos territórios e condições naturais. O autor atribui o fato a três fatores principais. Primeiro, a constituição de novas formas "flexíveis" de planejamento territorial, que enfatizam a "governança local" e o papel da iniciativa privada e da "sociedade civil" na criação de um "bom clima de negócio" e na associação do território à imagem de um "meio ambiente saudável", vistas como vantagens comparativas num cenário de acirrada competição interlocal pela atração de capitais.

Segundo, as transformações simbólicas sofridas pela esfera política consubstanciadas na pós-democracia consensualista que, como se viu, pressupõe que eventuais conflitos entre "parceiros", supostamente iguais, podem sempre ser "racionalmente solucionados" por tecnologias competentes, exilando-se da política os atores que promovem ações que possam ameaçar aspectos essenciais das políticas de ordenamento territorial e ambiental, ou, mesmo, o "bom clima de negócio".

Terceiro, a tradição brasileira de elaboração de "planos-discursos" (Maricato), que, destituídos dos meios de sua efetivação, incorporam apenas retoricamente questões sociais e ambientais, mantendo em outras esferas as decisões efetivas sobre o ordenamento territorial.

Bezerra identifica, nas tentativas de implementação da Agenda 21 por ele examinadas, o acionamento de aspectos típicos do "planejamento flexível" e da pós-democracia consensualista, os quais, em suas palavras, "mexem exclusivamente com a dimensão simbólica da política ambiental, evidenciando a intenção monológica de estabilizar tensões que possam ameaçar a legitimidade política das administrações locais, assim como o afluxo de capitais e investimentos às referidas localidades".

A seguir, o autor mostra como experiências com a Agenda 21 restringem-se a tentativas de ressignificar a imagem de localidades historicamente marcadas por fortes conflitos ambientais, como Volta Redonda, o morro do Preventório e a ilha de Paquetá. Bezerra demonstra ainda que as estratégias consensualistas, mesmo meramente como promotoras de um "espaço discursivo", mostram-se muito limitadas em situações em que emergem conflitos irredutíveis entre atores que, assim, não podem ser convertidos em "parceiros". Em conclusão, o autor captura com precisão a medula do assunto: a dinâmica de construção da Agenda 21 não resulta num efetivo "planejamento da ação sobre o meio ambiente, mas sim do planejamento de uma nova subjetividade a ser imputada sobre os agentes envolvidos, nos quais se busca instigar uma lógica de atuação não-conflitiva, neutralizando a diversidade de perspectivas e possibilidades".

Em suma, por suas contribuições analíticas e por seu espírito anti-dóxico, Cidade, ambiente e política: problematizando a Agenda 21 local constitui obra imprescindível e única como guia para quem pretende navegar sem ingenuidade nas águas turvas da "questão ambiental". Ao colocar diretamente o dedo nas feridas das concepções e práticas dominantes, o livro concita os cientistas sociais à reflexão crítica sobre os conceitos que andam mobilizando em suas análises e, também, alerta os militantes para o risco de que seus esforços pontuais, geralmente repletos de boas intenções, acabem colaborando para a reprodução das realidades que pretendem combater.



Eder Jurandir Carneiro
Núcleo de Investigações em Justiça Ambiental – NINJA, Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de São João del-Rei
Praça dom Helvécio, 74
São João del-Rei, CEP 36301-160, Minas Gerais, Brasil
Fones: (32) 3379 2454, 3379 2433
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quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

´"É.VOCÊ ESTÁ NO CAMINHO..."

“É . VOCÊ ESTÁ NO CAMINHO... “

Atualmente , em muitas oportunidades tenho pensado sobre as diversas possibilidades de ação que venho experimentando desde que abracei a Doutrina dos Espíritos e passei a trabalhar em uma Casa Espírita . Em algumas ocasiões , os meus companheiros de jornada acabam sendo muito pacientes comigo e passam um certo tempo ouvindo as minhas questões. Em outras , acabo derramando algumas dessas idéias no meu amigo desta hora - o computador .Acho que nessa hora fico mais à vontade...Então vamos lá!
A questão que quero colocar nesse momento traz as minhas (?) impressões acerca da maneira como venho lidando com os temas da Mediunidade . Mais especificamente quero trazer a minha experiência desta ocasião.O tema da hora diz respeito ao que a maior parte das pessoas convencionou chamar de “Incorporação” .Inicialmente quero concordar com uma considerável parcela dos meus amigos que preferem usar a expressão “Aproximação” para falar dessa situação . Ao tomar essa atitude , compreendo que estou falando do que mais se aproxima da sensação que experimento neste momento . Em seguida ao trabalho de relaxamento – considerado por mim o começo da atividade mediúnica , começo a fixar o meu pensamento na peculiar natureza desse momento . É como se eu tivesse indo numa viagem para encontrar amigos muito queridos e especiais.Esse é o momento que estou “embarcando” e pensando no encontro e na alegria de rever todos eles.Aos poucos vou sendo “levado” para esse momento e devagar “sinto” a aproximação de muitos deles e de um em especial.Cabe colocar aqui que essa experiência é mais facilmente alcançada na medida em que me disponibilizo satisfatoriamente para ele. Estou dizendo que sinto que essa ligação depende muito mais de mim do que deles . De maneira nenhuma estou falando de uma eventual fragilidade da parte desses meus Companheiros Espirituais . Estou trazendo aqui a minha fragilidade.No meu caso , quero aqui colocar que em muitas ocasiões me percebo assim e tenho empreendido um esforço muito grande para a modificação necessária das minhas tendências . Mas – e isso tem me servido de estimulo, em muitas ocasiões ,apesar das minhas incertezas , eles tem sempre estado comigo , alertando a minha insegurança e apontando para as eventuais saídas.Nestas horas , sinto que o trabalho poderia ficar mais azeitado , mas em nenhuma dessas situações me percebo completamente sozinho.E o que mais me leva pra frente é essa certeza aliada à vontade e ao compromisso que tenho firmado comigo e com eles em acertar.
Sinto que esse caminho depende muito mais da minha intenção e pode cada vez mais ser clareado pela minha crença e pela minha fé .Não só em mim ,mas principal e primeiramente no Nosso Pai , em Jesus e nos meus queridos Companheiros Espirituais. E essa também é uma questão importante para mim . A maioria dos meus amigos de Doutrina chamam os seus amigos do Astral de “Entidades”. Alguns ainda acrescentam o pronome pessoal na primeira pessoa do singular para falar sobre esses queridos irmãos. No meu caso ,fui aprendendo aos poucos e tenho preferido chamá-los de Companheiros. Para mim , isso ajuda e compreender melhor a relação que tenho (re) estabelecido com cada um deles . Além disso , no meu caso , torna a relação mais prazerosa e pessoal , mas sobretudo respeitosa .Sim , porque só para um querido companheiro , você reparte e compartilha as suas impressões ,expõe as suas incertezas e comemora as suas vitórias. É assim que eu tenho (re) aprendido a ouvi-los , a considerá-los e a respeitá-los.Dessa forma ,que acredito muito particular,é que tenho ganhado um pouco mais de segurança na lida com as minhas experiências mediúnicas.Nessas situações,tenho percebido que em todas as oportunidades que venho experimentando preciso estar predisposto a cada uma delas e atento a todo tipo de sinal que puder alcançar.Uma questão que muito me atrapalhava - não quer dizer que ainda não me atrapalhe mais , é a minha natural ansiedade em alcançar rapidamente a minha meta.No caso das minhas experiências , isso já me atrapalhou bastante , e hoje, no primeiro momento de ansiedade , a luz amarela acende (olha o sinal) e eu sei que é a hora de me acalmar.Nesse caso , a minha melhor “arma” é a prece que me (re) liga à sintonia . E esse é outro ponto importante.
Tenho percebido que a minha predisposição para esse momento tem a ver com a minha capacidade de me concentrar para ele. Já percebi na prática que essa capacidade pode me levar para experiências de natureza diversa.É importante ressaltar que tenho sido levado a compreender que todos nós – encarnados e desencarnados , somos igualmente habitantes desse Orbe. Mais ainda , independente da nossa condição evolutiva , somos todos filhos do Nosso Pai que nos quer igualmente a todos com o mesmo carinho. Além disso , a nossa condição de encarnado não nos qualifica de maneira nenhuma à condição de espírito de luz nem nos abre a porta do Bem.Devemos nos lembrar que estamos apenas – é isso é muito importante , na experiência misericordiosa da reencarnação. Da mesma maneira que nós , os nossos companheiros desencarnados também estão na mesma situação .Só que ,momentaneamente experimentam o outro lado da vida. Se somos mais ou menos esclarecidos e conseqüentemente , mais ou menos afeitos ao Bem ou ao Mal , isso só tem a ver com a nossa capacidade e a nossa sintonia em transitar em qualquer um desses campos e dimensões.Cabe a nós – e somente a nós ,tirarmos o melhor de cada hora , de cada dia , de cada semana ,de cada mês, de cada ano , de cada vida e assim sucessivamente por toda a eternidade . Ou será que esquecemos que somos espíritos imortais?
Por isso é que cada vez mais tenho aprendido que devemos considerar toda experiência mediúnica como única. Temos que valorizar cada uma dessas situações de forma própria e peculiar . Se já aceitamos que todos nós estamos na mesma situação – apenas em circunstância diferenciada , não nos compete rotular nenhuma ocorrência nem qualificar nenhum irmão de bom ou mal em sua estrada evolutiva. Acredito que se conseguimos “captar” o sinal de um irmão – independente de sua situação evolutiva ,temos que aproveitar a situação para dar o nosso melhor e compreender que ele também está nos dando o seu melhor . Assim – e só assim ,estaremos aproveitando toda tarefa como necessária a nossa condição individual ,coletiva e planetária.
Ao terminar ,quero reforçar o que já venho falando há algum tempo . É imperioso que nós espíritas façamos uso permanente do estudo das bases de nossa Doutrina tão querida. Só o estudo abre as nossas possibilidades de entendimento e percepção da nossa realidade em todas as suas dimensões. O estudo é que pode qualificar a nossa ação e dar sustância as nossas melhores possibilidades. É o estudo que vai nos levar ao entendimento da necessidade do nosso aprimoramento moral fundamental a nossa evolução espiritual.



Marco Aurélio Faria Rezende

SOBRE A MEDIUNIDADE

ESTUDO SOBRE A MEDIUNIDADE
SILVIO E CLARICE SENO CHIBENI


1. Introdução
A mediunidade desempenha papel essencial no estabelecimento da base experimental da ciência espírita e nas atividades dos centros espíritas. Seu estudo sistemático e contínuo possibilita a correta compreensão tanto de sua natureza como de suas finalidades, habilitando-nos a dela obter seguros e produtivos resultados, com vistas ao nosso aperfeiçoamento intelectual e moral.
Esse estudo deve necessariamente estar centralizado no mais completo e profundo tratado que já se escreveu sobre a mediunidade: O Livro dos Médiuns, de Allan Kardec. Os presentes apontamentos devem ser tidos unicamente como uma exposição incompleta de alguns tópicos importantes, destinada a facilitar posteriores contatos com essa obra fundamental e a vasta literatura subsidiária surgida desde sua publicação, em 1861.
No Vocabulário Espírita que forma o capítulo 32 desse livro Kardec dá como sinônimos os termos mediunidade e medianimidade, definindo-os com "a faculdade dos médiuns". Quanto à palavra médium, Kardec explicita o seu significado em várias passagens de suas obras, como por exemplo, nesse mesmo Vocabulário, onde se encontra esta definição sucinta:
MÉDIUM. (do latim, medium, meio, intermediário). Pessoa que pode servir de intermediário entre os Espíritos e os homens.
Ao analisar os conceitos de médium e de mediunidade, faz notar que a palavra médium comporta duas acepções distintas, expressas com clareza neste trecho da Revue Spirite:
Acepção ampla:
Qualquer pessoa apta a receber ou a transmitir comunicações dos Espíritos é, por isso mesmo, médium, quaisquer que sejam o modo empregado e o grau de desenvolvimento da faculdade, desde a simples influência oculta até à produção dos mais insólitos fenômenos.
Acepção restrita:
Em seu uso ordinário, todavia, esse termo tem uma aplicação mais restrita, aplicando-se às pessoas dotadas de um poder mediador suficientemente grande, seja para a produção de efeitos físicos, seja para transmitir o pensamento dos Espíritos pela escrita ou pela palavra.
Quando analisamos um texto ou um discurso onde o termo médium aparece, é importante reconhecer em qual desses sentidos está sendo empregado, a fim de se evitarem mal-entendidos e discussões sem fundamento. Assim, por exemplo, a afirmação feita no parágrafo 159 de O Livro dos Médiuns de que "todos [os homens] são quase médiuns" deverá ser entendida apenas na acepção ampla do termo, pois sabemos, pela questão 459 de O Livro dos Espíritos, que todos somos passíveis de receber a influência dos Espíritos, ainda que sob a forma sutil de intuição. Incorreremos em grave equívoco se concluirmos daí que todos somos mais ou menos médiuns no sentido restrito e usual da palavra, ou seja, se julgarmos que todos podemos produzir manifestações ostensivas, tais como a psicofonia, a psicografia, os efeitos físicos etc.

2. A natureza da mediunidade

Limitando-nos daqui para frente à acepção restrita do termo 'médium', que é a mais usual e relevante, estaremos, no que se vai seguir, entendendo a mediunidade como a aptidão especial que certas pessoas possuem para servir de meio de comunicação entre os Espíritos e os homens.
A questão que naturalmente surge neste ponto é a de se determinar qual é a natureza da faculdade mediúnica: quais as suas causas, por que surge somente em determinadas pessoas e em modalidades e graus diversos, se é passível de desenvolvimento forçado mediante alguma técnica etc.
Um aspecto central relativo à natureza da mediunidade acha-se exposto na resposta à questão que Kardec endereçou aos Espíritos no parágrafo 226 de O Livro dos Médiuns:
O desenvolvimento da mediunidade guarda proporção com o desenvolvimento moral dos médiuns?
"Não; a faculdade propriamente dita prende-se ao organismo; independe do moral. O mesmo, porém, não se dá com o seu uso, que pode ser bom ou mau, conforme as qualidades do médium”.
Como observamos pela resposta dos Espíritos, a capacidade de servir de "ponte" entre o mundo espiritual e o mundo material está ligada a fatores de ordem orgânica. Esse ponto encontra-se exarado em vários lugares das obras de Kardec e de outros autores espíritas abalizados, passando, no entanto, despercebido à maioria das pessoas, mesmo espíritas.
Já em 1859 Kardec afirmava, em seu livro Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas que "essa faculdade depende de uma disposição orgânica especial, suscetível de desenvolvimento”.Em O Livro dos Médiuns as referências nesse sentido são numerosas. No parágrafo 94, por exemplo, que trata das manifestações físicas espontâneas, os Espíritos informam que a aptidão de ser médium de efeitos físicos "se acha ligada a uma disposição física”.Bem mais adiante, ao estudar a formação dos médiuns (§ 209), Kardec retorna ao assunto:
Têm-se visto pessoas inteiramente incrédulas ficarem espantadas de escrever [mediunicamente] a seu mal grado, enquanto que crentes sinceros não o conseguem, o que prova que esta faculdade se prende a uma disposição orgânica.
Notemos que nesta última passagem há referência a mais um princípio importante: a mediunidade não depende das convicções filosóficas ou das crenças religiosas do médium.
Por fim, em resposta à questão 19 do parágrafo 223 desse mesmo livro os Espíritos esclarecem que "a mediunidade propriamente dita independe da inteligência bem como das qualidades morais" do médium. Portanto a mediunidade independe também do desenvolvimento intelectual do médium.
Resumindo o que vimos até aqui:
A mediunidade é a faculdade especial que certas pessoas possuem para servir de intermediárias entre os Espíritos e os homens. Ela tem origem orgânica, e independe:
o da condição moral do médium;
o de suas crenças;
o de seu desenvolvimento intelectual.
No parágrafo 200 de O Livro dos Médiuns, Allan Kardec deixa claro que "não há senão um único meio de constatar [a existência da faculdade mediúnica em alguém]: a experimentação." Ou seja, só poderemos saber que uma pessoa é médium observando que efetivamente é capaz de servir de intermediário aos Espíritos desencarnados.
Isso naturalmente remete à importante questão do desenvolvimento da mediunidade. Por sua importância e pelas confusões e equívocos a que se tem prestado, merece ser abordada numa seção especial.

3. O desenvolvimento da mediunidade

Uma primeira observação a ser feita é que se a presença da faculdade mediúnica em uma pessoa independe de sua condição moral, intelectual e de crença, ninguém poderá tornar-se médium tão-somente pelo fato de moralizar-se, ou de estudar, ou de aderir às convicções espíritas. É evidente que essas atitudes serão de imenso proveito para a criatura, pois a colocarão em condições de compreender e utilizar bem a faculdade mediúnica que porventura possua.
É significativo, a esse respeito, que Kardec tenha alertado já no terceiro parágrafo da Introdução de O Livro dos Médiuns que muito se enganaria aquele que "supusesse encontrar nesta obra uma receita universal e infalível para formar médiuns." Lança mão, a seguir, de uma comparação muito clara e objetiva, que esclarece o assunto à saciedade (os destaques são nossos):
Se bem que cada um traga em si o gérmen das qualidades necessárias para se tornar médium, tais qualidades existem em graus muito diferentes e o seu desenvolvimento depende de causas que a ninguém é dado conseguir se verifiquem à vontade. As regras da poesia, da pintura e da música não fazem que se tornem poetas, pintores, ou músicos os que não têm o gênio de algumas dessas artes. Apenas guiam os que as cultivam no emprego de suas faculdades naturais. O mesmo sucede com o nosso trabalho. Seu objetivo consiste em indicar os meios de desenvolvimento da faculdade mediúnica, tanto quanto o permitam as disposições de cada um, e, sobretudo, dirigir-lhe o emprego de modo útil, quando ela exista.
O caráter espontâneo da faculdade mediúnica é ainda destacado no parágrafo 208 de O Livro dos Médiuns (o destaque é nosso):
Se os rudimentos da faculdade [mediúnica] não existem, nada fará que apareçam [...].
No capítulo intitulado "Manifestações dos Espíritos" de Obras Póstumas (parágrafo 6, no 34) encontramos esta densa passagem (destaque nosso):
O desenvolvimento da faculdade mediúnica depende da natureza mais ou menos expansível do perispírito do médium e da maior ou menor facilidade da sua assimilação pelo dos Espíritos; depende, portanto, do organismo e pode ser desenvolvida quando exista o princípio; não pode, porém, ser adquirida quando o princípio não exista.
E no parágrafo 198 de O Livro dos Médiuns, que trata da diversidade das faculdades mediúnicas, lemos ainda:
Em erro grave incorre quem queira forçar a todo custo o desenvolvimento de uma faculdade que não possua. Deve a pessoa cultivar todas aquelas de que reconheça possuir o gérmen. Procurar à força ter as outras é, antes de tudo, perder tempo, e, em segundo lugar, perder talvez, enfraquecer com certeza, as de que seja dotado.
Encerrando esse parágrafo, Kardec transcreve comunicação mediúnica de Sócrates sobre o desenvolvimento da mediunidade, que contém grave advertência:
Quando existe o princípio, o gérmen de uma faculdade, esta se manifesta sempre por sinais inequívocos. Limitando-se à sua especialidade, pode o médium tornar-se excelente e obter grandes e belas coisas; ocupando-se de tudo, nada de bom obterá. Notai, de passagem, que o desejo de ampliar indefinidamente o âmbito de suas faculdades é uma pretensão orgulhosa, que os Espíritos nuncam deixam impune. Os bons abandonam o presunçoso, que se torna então joguete dos mentirosos. Infelizmente, não é raro verem-se médiuns que, não contentes com os dons que receberam, aspiram, por amor-próprio ou ambição, a possuir faculdades excepcionais, capazes de os tornarem notados. Essa pretensão lhes tira a qualidade mais preciosa: a de médiuns seguros.
Apenas como exemplo de opinião de um outro autor, corroborativa da de Allan Kardec, vejamos como Emmanuel responde à questão 384 de seu livro O Consolador, questão essa que versa especificamente sobre o tema que estamos focalizando:
Dever-se-á provocar o desenvolvimento da mediunidade?
A mediunidade não deve ser fruto de precipitação nesse ou naquele setor da atividade doutrinária, porquanto, em tal assunto, toda a espontaneidade é indispensável, considerando-se que as tarefas mediúnicas são dirigidas pelos mentores do plano espiritual.
Logo em seguida, em resposta à questão 386, o conceituado Espírito reitera:
Ninguém deverá forçar o desenvolvimento dessa ou daqula faculdade, porque, nesse terreno, toda a espontaneidade é necessária; observando-se, contudo, a floração mediúnica espontânea, nas expressões mais simples, deve-se aceitar o evento com as melhores disposições de trabalho e boa-vontade [...].
Precisamos, portanto estar vigilantes quanto à opinião, infelizmente tão comum no meio espírita, de que as pessoas que aparecem nas casas espíritas devem, cedo ou tarde, ser encaminhadas às chamadas "sessões de desenvolvimento mediúnico". São dois os motivos mais freqüentemente alegados para esse tipo de recomendação: 1) o empenho e dedicação com que alguém se interesse pelo Espiritismo, sugerindo, segundo julgam, que tem "todas as condições" para exercer a mediunidade; 2) os desequilíbrios variados de saúde ou de comportamento que apresente, notadamente quando venham desafiando a perícia dos médicos.
Ora, no primeiro caso dever-se-ia ponderar que as boas disposições da pessoa deverão ser aproveitadas antes de mais nada em seu aperfeiçoamento intelectual e moral, e, em se tratando de sua colaboração nas atividades do centro espírita, naquele setor ao qual mais se ajuste por sua formação profissional, seus interesses e disponibilidades, quais sejam a condução de estudos, a evangelização infanto-juvenil, a administração, a biblioteca, as visitas fraternas, a costura de enxovais, a faxina, a distribuição de alimentos, a acolhida aos novos freqüentadores etc., ou os trabalhos mediúnicos, se os sinais de mediunidade se apresentarem de forma espontânea.
No segundo caso, que é o mais freqüente, seria preciso compreender que o mero fato de alguém encontrar-se desequilibrado significa que não pode ser inserido no grupo mediúnico, sob o risco de comprometer o seu bom funcionamento. A mediunidade em si é uma faculdade neutra, que não tem qualquer conexão com os desajustes físicos, mentais e espirituais da criatura. Estes surgem por motivos específicos, e requerem o tratamento médico, psicológico ou espírita adequado ao caso. Somente após seu retorno à normalidade é que a pessoa poderá participar, como médium, dos trabalhos mediúnicos, se a faculdade surgir espontaneamente. O exercício da mediunidade não é recomendável na presença de determinadas enfermidades físicas, como por exemplo, nas doenças contagiosas, ou onde o equilíbrio orgânico esteja "por um fio" e a atividade mediúnica envolva situações que emocionem muito o médium. No caso dos desequilíbrios mentais e espirituais, o exercício mediúnico não pode nunca ser iniciado, ou continuado. Um médium nessas condições não poderá contribuir positivamente, além de gerar dificuldades para o grupo, facilitando mesmo a atuação de Espíritos interessados na instalação da desarmonia, dos melindres, das suspeitas, do enregelamento das relações entre os membros.
O desenvolvimento mediúnico a ser promovido nos centros espíritas não deve nunca ser entendido como o aprendizado de técnicas e métodos para fazer surgir a mediunidade, pois que não os há nem pode haver, mas exclusivamente como o aprimoramento e direcionamento útil e equilibrado das faculdades surgidas de forma natural, o que pressupõe o aperfeiçoamento integral do médium, por meio do estudo sério e de seus esforços incessantes para amoldar suas ações às diretrizes evangélicas.
Ressaltemos, outrossim, que os núcleos espíritas não deverão iniciar qualquer trabalho mediúnico, quer de desenvolvimento (no sentido correto do termo), quer, menos ainda, de assistência aos Espíritos enfermos, se não estiverem seguros de que dispõem de colaboradores suficientemente preparados, por seus conhecimentos doutrinários, por seu equilíbrio psicológico e por sua conduta cristã, que disponham de tempo para encetar com regularidade tão delicada tarefa.
Resumindo o que foi visto nesta seção:
o A mediunidade é uma faculdade natural, que surge espontaneamente.
o Não se deve procurar desenvolvê-la enquanto não aflorar por si só.
o O desenvolvimento da mediunidade deve ser entendido unicamente como a sua educação, o seu aprimoramento, a sua disciplina, o seu direcionamento útil para o bem.
o A mediunidade não é a causa primária dos desequilíbrios orgânicos e psicológicos.
o O exercício da mediunidade não deve ser colocado como a culminação obrigatória das atividades do cooperador da casa espírita.

4. Os mecanismos da mediunidade

Na presente seção procuraremos reunir alguns informes sobre os mecanismos da faculdade mediúnica, ou seja, sobre como se dá o fenômeno mediúnico. A fonte básica continuará sendo Allan Kardec. Iniciemos com este trecho, já parcialmente transcrito, do capítulo "Manifestações dos Espíritos" de Obras Póstumas (§ 6, no 34; o destaque é nosso):
O fluido perispirítico é o agente de todos os fenômenos espíritas, que só se podem produzir pela ação recíproca dos fluidos que emitem o médium e o Espírito. O desenvolvimento da faculdade mediúnica depende da natureza mais ou menos expansível do perispírito do médium e da maior ou menor facilidade da sua assimilação pelo dos Espíritos.
Esmiuçando as informações aqui contidas, notamos:
1) O perispírito desempenha papel de capital importância no processo mediúnico.
2) Sendo o perispírito "o agente de todos os fenômenos espíritas", e estes só podendo produzir-se pela ação recíproca dos fluidos que emitem o médium e o Espírito, temos como regra sem exceções que, ocorrendo um fenômeno de comunicação com o mundo espiritual, necessariamente haverá a participação de um médium. Em alguns casos, como em certas manifestações de efeitos físicos, não se nota a presença do médium, mas podemos estar certos de que haverá alguém, em algum lugar, servindo de médium, ainda mesmo que este não esteja consciente do papel que desempenha. Também percebemos que serão vãos os esforços de certos pesquisadores que, desprezando a riquíssima contribuição do Espiritismo para o estudo daquilo que (impropriamente) denominam "paranormalidade", tentam detectar o Espírito unicamente por meio de aparelhos. Se algum instrumento chegar a registrar um espírito, é porque houve a participação oculta de algum médium. Neste caso, seria mais confiável analisar a manifestação diretamente, sem o recurso indireto de instrumentos, que sempre constituem fonte adicional de incertezas.
3) A presença da faculdade mediúnica em alguém liga-se à possibilidade de seu perispírito "expandir-se". Veremos logo mais que essa "expansão" do corpo espiritual pode ser entendida como a sua parcial desvinculação do corpo físico.
4) A efetivação da comunicação exige, além da "expansão" do perispírito do médium, a assimilação deste com o perispírito do Espírito comunicante, ou seja, tem de haver sintonia entre ambos. Esse fato importante, de que o médium em geral não é capaz de comunicar-se indiscriminadamente com todos os Espíritos, é exposto em Obras Póstumas imediatamente após o trecho que acabamos de transcrever (§ 6, no 35; os grifos são nossos):
As relações entre os Espíritos e os médiuns se estabelecem por meio dos respectivos perispíritos, dependendo a facilidade dessas relações do grau de afinidade existente entre os dois fluidos. Alguns há que se combinam facilmente, enquanto outros se repelem, donde se segue que não basta ser médium para que uma pessoa se comunique indistintamente com todos os Espíritos. Há médiuns que só com certos Espíritos podem comunicar-se ou com Espíritos de certas categorias, e outros que não o podem a não ser pela transmissão do pensamento, sem qualquer manifestação exterior.
No exame do assunto do item 3, podemos colher subsídios em André Luiz, o autor espiritual que tanto tem contribuído para a extensão de nosso conhecimento científico acerca da mediunidade. Em sua obra Evolução em Dois Mundos, ao analisar a fase evolutiva em que se elaborava a faculdade de desprendimento do veículo perispiritual durante o sono (capítulo 17, item "Mediunidade espontânea"), adianta esta valiosa informação (grifamos):
Consolidadas semelhantes relações com o Plano Espiritual [...], começaram na Terra os movimentos de mediunidade espontânea, porquanto os encarnados que demonstrassem capacidades mediúnicas mais evidentes, pela comunhão menos estreita entre as células do corpo físico e do corpo espiritual, em certas regiões do campo somático, passaram das observações durante o sono às da vigília, a princípio fragmentárias, mas acentuáveis com o tempo [...].
Vemos, assim, que o respeitado cientista deixa entrever a correlação íntima entre a possibilidade de contato com a realidade espiritual durante a vigília (mediunidade) e um certo "afrouxamento" das ligações entre as células do perispírito e as suas correspondentes do corpo material. Prosseguindo, André Luiz explicita mais essa correlação:
Quanto menos densos os elos de ligação entre os implementos físicos e espirituais, nos órgãos da visão, mais amplas as possibilidades na clarividência, prevalecendo as mesmas normas para a clariaudiência e modalidades outras, no intercâmbio entre as duas esferas [...].
Refletindo um pouco sobre as assertivas de André Luiz, verificamos, inicialmente, que não conflitam com a explicação dada por Kardec, em termos da capacidade de expansão do perispírito do médium. Há, pelo contrário, até um reforço, já que a noção de "expansão" é aqui suficientemente abrangente e flexível para permitir ulteriores elaborações e detalhamentos, dentro da natureza eminentemente progressiva do Espiritismo. Podemos compreender, deste modo, a "expansibilidade" do perispírito como a sua faculdade de desvinculação parcial e temporária do corpo físico, passando, nesse estado especial, a partilhar da realidade do mundo espiritual para nela colher impressões diversas, sem, no entanto perder a possibilidade de atuação sobre o corpo denso.
É fundamental deixar claro que o que acabamos de expor não corrobora de modo algum a idéia popular de que no processo mediúnico o Espírito do médium "sai" e "dá lugar" ao Espírito comunicante, que passaria então a servir-se diretamente do corpo do médium. Os Instrutores Espirituais já esclareceram a Kardec, no importante capítulo "Do papel do médium nas comunicações espíritas" de O Livro dos Médiuns que essa idéia não corresponde à realidade. A mensagem sempre passa pelo Espírito do médium, mesmo quando ele não guarda disso a consciência ao despertar do transe. Vejamos o que dizem no item sexto do parágrafo 223:
O Espírito que se comunica por um médium transmite diretamente o seu pensamento, ou este tem por intermediário o Espírito do médium?
"É o Espírito do médium que é o intérprete, porque está ligado ao corpo que serve para falar e por ser necessária uma cadeia entre vós e os Espíritos que se comunicam, como é preciso um fio elétrico para comunicar à grande distância uma notícia e, na extremidade do fio, uma pessoa inteligente que a receba e transmita”.
Compreendemos então que, em última instância, o comando do veículo físico só pode ser feito pelo seu próprio "dono". Poderíamos dizer que o corpo material é feito "sob medida" para cada Espírito, e que não "serve" para nenhum outro. O Espírito estranho não tem como agir diretamente sobre as células materiais formadas sob a influência de outro Espírito e para o seu próprio uso.
É interessante notar que nas questões seguintes à transcrita os Espíritos frisam mesmo enfrentando uma oposição inicial de Kardec que essa é uma regra absoluta, sem exceções, nem mesmo na mediunidade dita "mecânica", ou ainda nos casos de efeitos físicos onde uma mensagem inteligente é transmitida (tiptologia, escrita por meio de pranchetas etc). Vemos, na questão 10 do referido parágrafo, que os Espíritos expressam indiretamente sua desaprovação a esse modo de denominar a mediunidade na qual o médium não guarda consciência do conteúdo da cominicação: o médium jamais atua como máquina, mecanicamente.
Resumindo o conteúdo desta seção:
o O perispírito desempenha papel essencial em todos os processos mediúnicos.
o A faculdade mediúnica liga-se à possibilidade de o perispírito desvincular-se parcialmente do corpo físico durante a vigília.
o A comunicação não se efetiva sem que haja sintonia entre os perispíritos do médium e do Espírito.
o A comunicação espiritual, ainda que de efeitos físicos, sempre passa pelo Espírito do médium.

5. As modalidades mediúnicas

Um aspecto importante dos esclarecimentos de André Luiz é que permitem compreender não somente como se dá o fenômeno mediúnico, mas também o porquê da existência de diferentes modalidades de mediunidade. Observamos, pelos trechos citados, que a faculdade mediúnica será deste ou daquele tipo conforme a região do organismo em que as células do perispírito apresentem maiores possibilidades de desvinculação das que lhe correspondem no corpo físico. Desse modo, segundo o exemplo dado, se for nos órgãos da visão que ocorre a maior liberdade das células do perispírito, a mediunidade assumirá a forma de vidência; se nos órgãos da audição, a de audiência; se nos da fala, a de psicofonia, e assim por diante.
Devemos notar, no entanto, que os órgãos a que se refere André Luiz são, conforme se depreende de outras passagens de sua obra, não tanto os órgãos periféricos olhos, ouvidos, mãos etc. , mas fundamentalmente as regiões do cérebro responsáveis por seu comando. De fato, a ciência mostrou que há no cérebro grupos de neurônios (células nervosas) mais ou menos especializados para as diversas faculdades sensoriais e motoras. No caso da visão, por exemplo, tais neurônios recebem, através do nervo óptico, os impulsos elétricos gerados na retina do olho, sinais esses que a alma interpreta como imagens. O mesmo se dá, mutatis mutandis, com os demais sentidos. No caso das funções motoras, ao comando da alma determinados centros cerebrais enviam, através dos diferentes nervos, impulsos elétricos aos músculos, resultando daí os movimentos corporais.
Kardec dividiu os médiuns em duas grandes categorias: os de efeitos físicos e os de efeitos intelectuais. Os primeiros são "aqueles que têm o poder de provocar efeitos materiais, ou manifestações ostensivas"; os segundos, "os que são mais especialmente próprios a receber e a transmitir comunicações inteligentes" (O Livro dos Médiuns, parágrafo 187). Para fins didáticos, é conveniente subdividir a categoria de efeitos inteligentes em dois grupos: efeitos sensoriais (percepção da realidade espiritual na forma de uma impressão dos sentidos) e efeitos intelectuais propriamente ditos (transmissão de uma mensagem inteligente pela palavra escrita, oral, por gestos etc.).
Apresentaremos agora um quadro sinótico com os principais tipos de fenômenos mediúnicos, associados às diversas modalidades mediúnicas. Trata-se de uma adaptação do que foi elaborado por Jayme Cerviño em seu livro Além do Inconsciente, reunindo apenas as modalidades mais importantes. Nesse interessante e original livro, o autor infere, a partir de estudos clássicos da psicologia experimental e da neurofisiologia, bem como de investigações sobre os fenômenos espíritas, quais regiões do encéfalo estariam associadas às diferentes categorias de fenômenos espíritas.
EFEITOS INTELECTUAIS(mediunidades de expressão cortical) efeitos estritamente intelectuais(córtex frontal) intuição psicografiapsicofoniapsicopraxia
efeitos sensoriais (córtex extrafrontal) VidênciaaudiênciaSensitividade
telergia Sons, movimentos,Luzes, curas
EFEITOS FÍSICOS(mediunidades de).expressão subcortical) teleplastia materializações
somatização Transfiguraçãoestigmatização

6. O exercício da mediunidade

Na seção 2 deste trabalho vimos que se deve fazer uma distinção clara entre a mediunidade, enquanto faculdade, e o seu uso ou exercício. Se a faculdade em si é neutra, o mesmo não vale para o seu uso, que pode ser bom ou mau, dependendo da condição moral do médium.
Na Introdução de O Livro dos Médiuns Kardec destaca entre os objetivos da obra a orientação para que a mediunidade seja empregada de modo útil. Um requisito essencial para isso é a compreensão de sua natureza e mecanismos, no que o Espiritismo tem contribuído de forma decisiva. Respeitando a liberdade humana, ele não poderia prescrever normas de conduta para os médiuns de maneira cega, impositiva, sem um esclarecimento racional da sua necessidade. Éfacil constatar a justeza da afirmação de Kardec, nessa mesma Introdução, de que "as dificuldades e os desenganos com que muitos topam na prática do Espiritismo se originam na ignorância dos princípios desta ciência".
A preocupação com a compreensão e o exercício corretos da mediunidade vem sendo partilhada pelos espíritas sérios, que se conscientizaram da necessidade do crescimento espiritual do médium para que sua faculdade seja bem empregada. Muitos dos grandes autores espíritas dos dois planos da vida nos têm legado estudos e lições preciosas sobre a mediunidade e seu objetivo. Procuraremos, no que se vai seguir, compilar alguns desses ensinamentos.
Comecemos, no entanto, com O Livro dos Médiuns, em cujo parágrafo 226 Kardec pergunta aos Espíritos (no 3):
Os médiuns que fazem mal uso de suas faculdades, que não se servem delas para o bem, ou que não as aproveitam para se instruírem, sofrerão as conseqüências dessa falta?
"Se delas fizerem mau uso, serão punidos duplamente, porque têm um meio a mais de se esclarecerem e não o aproveitam. Aquele que vê claro e tropeça é mais censurável do que o cego que cai no fosso."
A questão da responsabilidade moral do uso da mediunidade é semelhante à das demais faculdades do homem. Aquele que emprega mal a inteligência, a palavra, os dotes artísticos ou a força física arcará com as conseqüências desse emprego, devendo expiar e reparar as faltas cometidas. No caso da mediunidade há um agravante, conforme se salienta na resposta dada, pois ela é poderoso recurso iluminativo.
É por meio da mediunidade que nos certificamos de nossa natureza imortal, fato de suma importância, em torno do qual gira todo o Espiritismo e sua doutrina moral. É ela que nos desvenda a vida futura, possibilitando-nos conhecer de modo abrangente os efeitos de nossas ações. Ajuizaremos então com mais acerto sobre o que nos convém ou não fazer, com vistas à nossa felicidade integral.
Para nós, os encarnados, a mediunidade constitui advertência contra o equívoco de tudo considerarmos do ponto de vista de nossos interesses materiais e imediatos, incentivando-nos a lutar contra o egoísmo, o embrutecimento dos prazeres, a estagnação do conhecimento.
Para os desencarnados sofredores, revoltados ou aturdidos, representa muitas vezes a via preferencial de despertamento, possibilitando-lhes retomar o progresso espiritual. A maioria das instituições espíritas em nosso país hoje em dia centraliza sua atuação mediúnica precisamente nessa tarefa, tão louvável pelos benefícios que espalha, mas também tão delicada em sua condução, exigindo muito preparo da equipe, quer no que concerne ao conhecimento doutrinário e à disciplina, quer quanto ao espírito fraterno e à devoção incondicional ao bem do próximo.
A esse respeito adverte Emmanuel no capítulo "Examinando a mediunidade" do livro Encontro Marcado:
O exercício da mediunidade nas tarefas espíritas exige larga disciplina mental, moral e física, assim como grande equilíbrio das emoções.
Na obra Educação e Vivência, lição "Mediunidade e problemas", o Espírito Camilo tece as seguintes considerações, ainda dentro desse tópico:
Tristemente, porém, muitas dessas criaturas que se sabem ou se imaginam médiuns não são bafejadas pelos recursos de amadurecido estudo, a fim de que compreendam o que é que se passa nesse vasto território dos fenômenos psíquicos.
Seria de esperar que os indivíduos que se embrenham pelos bosques das percepções mediúnicas fossem caindo em si, aprendendo que todos terão que dar conta desses talentos formidáveis que lhes são concedidos, nas experiências terrenas, na condição de empréstimo, proporcionando liberdade e ventura íntimas, logrando evadir-se dos tormentosos episódios do pretérito culposo ou negligente.
E em Cintilação das Estrelas (capítulo 32) esse lúcido Espírito prossegue no assunto:
Em mediunidade é importante que o médium se aplique em melhorar-se a si próprio, ampliando as percepções, iluminando-se a cada hora, nas lutas que deve enfrentar, na pauta do cotidiano.
O desenvolvimento da mediunidade marcha ladeando o desenvolvimento do médium. Quanto melhor o indivíduo, maior a sua fulgência mediúnica no bem.
Aprimore-se o homem para que se lhe ampliem as posições de sensibilidade mediúnica.
Têm-se infelizmente observado muitos agrupamentos mediúnicos descuidados quanto às superiores finalidades da mediunidade, bem como quanto às diretrizes doutrinárias que devem guiar sua prática. Não raro desenvolvem suas atividades de forma ritualística, tratando os médiuns como simples máquinas de comunicação. No momento do intercâmbio, os trabalhadores assumem posturas formais, como que denotando concentração e devoção ao bem, mas que nem sempre se fazem acompanhar das atitudes íntimas correspondentes. Manoel Philomeno de Miranda comentou esse tópico no capítulo intitulado "Mediunidade e viciação", do livro Sementeira da Fraternidade (p. 123):
O médium é filtro por cuja mente transitam as notícias da vida além-da-vida.
Nesse sentido, consideramos a concentração mental de modo diverso dos que a comparam a interruptor de fácil manejo que, acionado, oferece passagem à energia comunicante, sem mais cuidados... A concentração, por isso mesmo, deve ser um estado habitual da mente em Cristo, e não uma situação passageira junto ao Cristo.
Já analisamos na seção 3 a situação na qual o aparecimento da faculdade mediúnica se dá juntamente com desequilíbrios físico-espirituais variados, destacando o erro dos que consideram tais distúrbios como uma conseqüência da mediunidade em si. Em Educação e Vivência (p. 111), Camilo enfoca outro ângulo dessa questão:
A decantada "mediunidade de provas" não passa de episódio no qual alguém em provas e sérias expiações receberam da Divina Misericórdia as excelênicas da sensibilidade mediúnica, através de cujas portas será chamado ou convocado à assunção de responsabilidades, bem como ao cumprimento dos deveres para com Deus, através do próximo.
Dessa forma a mediunidade, mesmo quando se apresente assinalada por impertinentes padecimentos dos médiuns, representa para eles a mão da Celeste Providência evitando dores maiores e tormentos mais acerbos.
A origem do nosso sofrimento, da nossa aflição, não reside na mediunidade, mas a bagagem de desacertos que ainda trazemos, acumulada nesta e em vidas pregressas. É por isso que nossos recursos mediúnicos, neutros em si mesmos, amiúde ainda se ligam aos mundos de sombra. Mal empregada, a mediunidade significará o cultivo da ignorância, a disseminação da dúvida e da mentira, o insuflamento do egoísmo e do orgulho, da vaidade e do personalismo, o verbo e o texto degradantes, a manipulação de forças mentais deletérias, a porta aberta às obsessões.
No capítulo 39 do livro Sementeira da Fraternidade, Vianna de Carvalho descreve a mediunidade como "canal cósmico por onde transitam seguras as consolações e esperanças para o atribulado espírito humano" (p. 179), destacando outro aspecto da mediunidade: o consolo que prodigaliza ao homem em sua vida de incertezas e de dores. Que de mais belo existe do que saber que o abismo que se imagina existir entre nós e os entes queridos que já partiram não é intransponível; que os sofrimentos que não conseguimos evitar têm causas justas ligadas ao nosso passado!...
Dádiva com que a misericórdia divina nos favorece, informando-nos de nossa natureza de seres imortais, a mediunidade bem empregada reveste as formas de esclarecimento acerca da vida além-túmulo, de consolo para os que perderam a esperança, de advertência salvadora para os equivocados, de amparo para os que cambaleiam, de recursos terapêuticos para os que enfermaram, de despertamento para os sofredores e os trânsfugas do dever que já cruzaram a aduana da morte. Daí a necessidade de desenvolvermos esse abençoado talento, nos trabalhos da caridade, nos exercícios constantes de benevolência para com todos, indulgência para com as imperfeições dos outros, de perdão das ofensas, conforme a questão 886 de O Livro dos Espíritos.
Reconheçamos, acima de tudo, que mais importante do que sermos bons médiuns, no que toca à faculdade, é sermos médiuns bons, a serviço de Jesus.

Referências bibliográficas

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